terça-feira, 27 de junho de 2017

Quando vier o meio-dia e da noite só tiver uma certa semelhança

Ou o cenário para trás que a lucidez faz enxergar.  De Daniel Faria. 


Para mudar o mundo e de vida, primeiro é preciso estudar

Um dos efeitos mais nefastos do populismo, aliado à 'preguiça mental', é a desvalorização da reflexão teórica, em nome de um 'praticismo cego' e de discursos vazios, assim como da autopromoção, que, não poucas vezes, oculta interesses pessoais e o desejo de obter vantagens. É consistente, contudo, o juízo histórico segundo o qual para mudar o mundo, primeiro é preciso estudar, para entendê-lo. O texto aí abaixo passa em revista o tema, a partir do pensamento social clássico. 


Por Mario Sergio Conti

Não é de hoje que o empreendedorismo chama atenção. Num livro publicado há 123 anos, são feitas três afirmações sobre pessoas que tomam dinheiro emprestado para montar seus negócios.
Ele diz de início: "O fato que um homem sem fortuna, mas com energia, seriedade, capacidade e conhecimento dos negócios, possa tornar-se um capitalista é bastante admirado pelos economistas apologéticos".
Mas logo na sequência ele nega os economistas, constatando que o incremento do empreendedorismo "produz um número indesejado de novos cavaleiros da fortuna, que entram em competição com os diversos capitalistas individuais já existentes".
A sentença é encerrada com a negação da negativa anterior: o acréscimo de empreendedores "reforça a dominação do próprio capital, ampliando a sua base e permitindo-o recrutar sem interrupção forças novas no substrato da sociedade".
Está-se, como se vê, no âmbito da dialética, com tese, antítese e síntese concentradas numa frase. Está-se na página 660 da nova tradução do Livro 3 d'"O Capital", recém-lançada pela Boitempo. Marx não para aí, e faz um paralelo entre catolicismo e capitalismo:
"Do mesmo modo, o fato que na Idade Média a Igreja Católica formasse sua hierarquia com os melhores cérebros do povo, sem levar em conta estamento, nascimento ou patrimônio, foi um dos principais meios de consolidação do domínio eclesiástico."
Chega assim a uma generalização: "O domínio de uma classe é tanto mais sólido e perigoso quanto maior é a capacidade de essa classe dominante assimilar os homens mais importantes das classes dominadas".
Passe-se esse pensamento para a América Latina do século 21. Chega-se à conclusão –contraintuitiva– que Chávez, Morales e Lula, catapultados do substrato do povo para o topo do Estado, atestam a vitalidade do capitalismo. Mostram sua capacidade em cooptar os melhores entre os dominados, para por seu intermédio manter a dominação.
O Livro 3, contudo, não trata de política. Depois de estudar a produção e a circulação do capital nos volumes anteriores, Marx investiga a economia como um todo. O tema do Livro 3, pois, é o processo global de transformação do trabalho vivo no seu fantasma –o capital financeiro.
É um tema atual. Na crise de 2008, por exemplo, estourou uma bolha imobiliária nos EUA. Ela fora inflada por um sistema de crédito que, de um lado, financiava a construção civil, e, de outro, emprestava a empreendedores e pequenos poupadores.
Com a insolvência geral, aqueles que pegaram empréstimo para comprar casas e abrir negócios perderam os imóveis e o que investiram. Esse mecanismo de prejuízo total foi antevisto no Livro 3:
"A expropriação completa do trabalhador não é um resultado que o modo de produção capitalista procura alcançar, mas uma premissa da qual parte".
"O Capital" não é para ser lido na praia. Ele demanda empenho e paciência (sobretudo nos volumes 2 e 3, aos quais Marx não deu forma final), de tão intricada que é a economia capitalista.
Ele por certo pode ser estudado como outros clássicos da ciência do século 19, caso de "A Origem das Espécies" e "A Interpretação dos Sonhos", livros que qualquer pessoa razoavelmente educada leu. Mas é uma abordagem menos proveitosa porque tende a tratar "O Capital" como um mausoléu.
Foi o que fez o stalinismo. Já a derrocada da URSS, contraditoriamente, tanto marginalizou Marx como o livrou das amarras doutrinárias. O que o colapso da perspectiva socialista não conseguiu foi humanizar o capitalismo, estancar suas crises, impedir que devaste.
Melhor então voltar a "O Capital" pelo o que ele foi e ainda é: crítica do modo de produção que explora, corrompe e empesteia, transformado o planeta num mercado no qual somos todos mercadorias. Para mudar este mundo é preciso antes entendê-lo.

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Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/mariosergioconti/. Título original: 'Retorno ao Livro 3'. 

segunda-feira, 26 de junho de 2017

'A democracia e a única opção para o brasileiro não otário'

O texto aí abaixo, quanto a mim, tem passagens questionáveis, mas, de toda forma, vale a leitura.


Por Celso Rocha de Barros
(Doutor em Sociologia - Universidade de Oxford)

O quadro político brasileiro se deteriora lenta e sonambulamente, sem enfrentar resistência das ruas. Mas há um grande momento da verdade chegando, as eleições de 2018.
Pela primeira vez desde o impeachment, a opinião do eleitor voltará a ter importância. O eleitorado é fortemente pró-Lava Jato. As reformas econômicas também terão que ser temperadas com concessões ou promessas críveis de crescimento robusto. Não será fácil conduzir a política em 2018 só em gabinetes de Brasília e congressos empresariais, como ela foi conduzida desde 2015.
Mas 2018 será mesmo uma ruptura? É difícil saber, e é aconselhável administrar bem as expectativas.
A situação atual brasileira é uma espécie de transição de sistema econômico, de um capitalismo de compadrio para sabe-se-lá-o-quê. Nenhuma transição desse tipo rompeu inteiramente com os quadros do antigo regime de uma hora para outra. Mesmo que haja uma renovação, quadros do velho fisiologismo continuarão importantes, e será necessário tentar converter gente que começou na política como picareta às novas regras.
O crucial é que as novas regras sejam, de fato, implantadas, e que as investigações (e punições) não parem.
No caso das transições pós-comunistas, o cientista político Joel Hellman apontou para o risco da sub-reforma, que foi o que acabou prevalecendo na região da antiga União Soviética (mas não em outros países pós-comunistas): os vencedores da primeira rodada de reformas podem parar o processo no meio, enquanto estão ganhando.
Se, como resultado da Lava Jato, algo como um grande PMDB passar a governar o Brasil, teremos ficado presos na armadilha da sub-reforma. É notável, aliás, como a crise de PT e PSDB fortaleceu muito mais as velhas estruturas que os parasitavam do que alternativas reais e mais modernas.
Mas digamos que, em 2018, um programa de renovação vença. O novo governo precisará formar uma coalizão para governar. Com que apoio no Congresso, entre governadores e prefeitos, entre empresários e sindicatos, administrará o país? É absolutamente impossível que toda essa gente passe imediatamente para a órbita do outsider (podem, é claro, mentir que passaram).
Devemos, portanto, estar prontos para administrar uma série de equilíbrios temporários entre o velho fisiologismo e a renovação política. Isso, aliás, também é verdade caso PT e PSDB se renovem por troca de gerações. A esperança é que cada equilíbrio seja mais favorável à renovação do que o anterior, e que o processo ande tão rápido quanto possível.
O primeiro critério para votar bem em 2018 é, portanto, escolher alguém disposto a administrar essa tensão dentro das regras democráticas. Votar no sujeito que vai quebrar tudo que está aí costuma ser votar pela última vez. A democracia é bagunçada e confusa, mas é a única opção disponível para o brasileiro não otário. Só na democracia juízes e policiais trabalham sem medo do governo.
A transição para além do capitalismo de compadrio pode ser difícil, mas é exatamente a que precisa ser feita no Brasil. Se estivermos falando sério sobre construir um país desenvolvido, precisaremos administrá-la como adultos. Se, sob Temer, o risco é nossa apatia, no pós-Temer o risco pode ser o excesso de expectativas. 


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Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/celso-rocha-de-barros/

sexta-feira, 23 de junho de 2017

A porta mora à espera

De Daniel Faria, 'A Porta'. 


Vexame internacional

Por Bernardo Mello Franco 

A viagem de Michel Temer à Europa produziu um vexame internacional. Enquanto o presidente passeava em Oslo, o governo da Noruega anunciou que cortará pela metade a ajuda ao Fundo Amazônia. O motivo é o fracasso do Brasil no combate ao desmatamento.
A devastação da floresta avançou 29% na última medição anual, divulgada em novembro. O país perdeu 7.989 quilômetros quadrados de mata tropical, o equivalente a sete vezes a área da cidade do Rio de Janeiro. Foi o pior resultado em oito anos.
A Noruega é a maior patrocinadora do Fundo Amazônia. Já doou R$ 2,8 bilhões para o Brasil proteger as árvores e reduzir a emissão de carbono. Isso equivale a 97% dos recursos do fundo, que também recebeu aportes da Alemanha e da Petrobras.
Às vésperas da chegada de Temer, os noruegueses repreenderam o governo brasileiro pelo desmantelamento da política ambiental. O ministro Vidar Helgesen criticou a aprovação de medidas provisórias que reduzem unidades de conservação.
A pressão internacional convenceu o presidente a vetar as MPs. No entanto, o governo prometeu aos ruralistas que vai enviar ao Congresso um projeto de lei com o mesmo teor.
Após o anúncio desta quinta, o Fundo Amazônia deve perder ao menos R$ 166 milhões em doações. "É uma decisão humilhante para os brasileiros. O país pediu dinheiro para reduzir o desmatamento, mas o que está acontecendo é o contrário", me disse Jaime Gesisky, da WWF.
O secretário-executivo do Observatório do Clima, Carlos Rittl, avalia que o retrocesso ainda pode se agravar. "A aliança de Temer com a bancada ruralista está saindo muito caro. O meio ambiente virou moeda de troca na negociação para barrar o impeachment", afirmou.
Em Oslo, onde desfilou com uma reluzente gravata verde, o ministro Sarney Filho foi questionado se o Brasil vai reduzir o desmatamento. Sua resposta foi outro vexame: "Só Deus pode garantir isso". 

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Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/bernardomellofranco


quarta-feira, 21 de junho de 2017

segunda-feira, 19 de junho de 2017

O Avesso da Pele: Estão Todas as Verdades à Espera em Todas as Coisas

De algum modo, penso eu, todos aqueles que vivem a universidade como algo que não se deve confundir com o 'jogo de espertezas', com o discurso populista (à direita e à esquerda) e com o rebaixamento ético e de qualidade que atualmente atenta contra ela como centro do conhecimento sistematizado, sentem quando a instituição universitária perde um dos seus membros comprometidos com o seu métier. Assim falo a propósito do suicídio do Professor Waldir Pedrosa Amorim, Professor de gastroenterologia da UFPB, um profissional de referência na docência e atuante na pesquisa, além das incursões pelo campo literário e pela poesia. Não vem ao caso indagações sobre as razões do ato que Albert Camus qualificou como sendo a 'decisão em torno da única questão fundamental.' Ao tomar conhecimento do fato, de imediato, lembrei-me que, por esses dias, estive a folhear um livro de poesias dele, sugestivamente intitulado 'O Avesso da Pele'. Lembrei-me também de 'Estão Todas as Verdades à Espera em Todas as Coisas', de Walt Whitman.  

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Estão todas as verdades
à espera em todas as coisas:
não apressam o próprio nascimento
nem a ele se opõem,
não carecem do fórceps do obstetra,
e para mim a menos significante
é grande como todas.
(Que pode haver de maior ou menor
que um toque?)

Sermões e lógicas jamais convencem
o peso da noite cala bem mais
fundo em minha alma.

(Só o que se prova
a qualquer homem ou mulher,
é que é;
só o que ninguém pode negar,
é que é.)

Um minuto e uma gota de mim
tranquilizam o meu cérebro:
eu acredito que torrões de barro
podem vir a ser lâmpadas e amantes,
que um manual de manuais é a carne
de um homem ou mulher,
e que num ápice ou numa flor
está o sentimento de um pelo outro,
e hão de ramificar-se ao infinito
a começar daí
até que essa lição venha a ser de todos,
e um e todos nos possam deleitar
e nós a eles. 

('Estão Todas as Verdades à Espera em Todas as Coisas', Walt Whitman,  in Leaves of Grass, traduzido como  Folhas da Erva - antologia, seleção e tradução de José Agostinho Batista, Assírio e Alvin Editora, Lisboa, 2003) 

sexta-feira, 16 de junho de 2017

Quanto tempo a democracia suportará?

Por Carlos Melo
(Cientista político)

O destino do PSDB não tem mais importância; a legenda demonstrou que está sincronizada com a média do sistema político nacional. Nem promessas de voltar atrás no apoio ao governo Temer são relevantes. Risíveis são as declarações de que se pautaram pela ''ética da responsabilidade'', pesando meios e fins em relação ao país. Triste fim de Max Weber, acabar como sofisma em bico de tucano.
Pedantismos sociológicos à parte, o maior problema é mesmo o Brasil, hoje um vazio de ideias e lideranças; deixado à sorte da crise, sem referências que possam contornar a situação. Tão cedo, não se constituirá um centro capaz de reestruturar seu sistema político, reformando e modernizando-o. A lacuna ao centro favorecerá a polarização e o populismo, o que traz riscos evidentes.
De imediato, o que se vê é que a crise não cessará: o governo Temer é um trem descarrilhado; admite todo o tipo de concessões para se salvar e se fortalecer de modo a atropelar o que resta de instituições. Seus desmentidos não escondem intenções de que o objetivo é desqualificar os principais agentes da Lava Jato: o ministro Edson Fachin e o Procurador-Geral da República, Rodrigo Janot. ''Estancar a sangria'', como disse Romero Jucá.
No quadro presente, será improvável fazer reformas estruturais e conduzir ajustes fiscais relevantes. A reforma Trabalhista, por adiantada tramitação, ainda vai; mas a da Previdência tende a ficar para as calendas — dificilmente será aprovado mais que um símbolo. Ao mesmo tempo, renegociações com estados e todo tipo de interesse que possam significar proteção política, agravarão a situação das contas públicas.
À existência de um teto de gastos, é justo imaginar cortes de investimentos e na área social; ou que venham aumentos de impostos. Também a economia será incapaz de um salto significativo; a aceleração, se houver, será lenta. Para investidores estrangeiros, o país ainda é melhor caminho para ganhos elevados do que os demais BRICS; mais cautelosos, nativos olham com apreensão, colocam o pé no freio. Dificilmente, o padrão de crescimento do primeiro trimestre se repetirá.
Ao mesmo tempo, no front político não há perspectiva de paz: as denúncias contra o presidente, sua equipe e aliados não cessarão; há, sem dúvida, muito potencial de desgastes. Enterrar a Lava Jato é sonho de dez em cada dez dos mais de trezentos picaretas que, em quase todos os partidos, estão envolvidos com ela. Mas, não há força para isso: bem ou mal, a sociedade reage. No mínimo, há um empate estabelecido. Para desespero de Jucá, o sistema continuará a sangrar.
O sistema de pesos e contrapesos da democracia foi afetado: o Tribunal Superior Eleitoral deu mostras de uma Justiça incapaz de arbitrar o conflito político; houve aí o desgaste de personagens e instituições, que, pela omissão ou ação parcial, perderam credibilidade. A possibilidade de algum avanço nesse campo ficará por conta do Supremo Tribunal Federal — a última cidadela, também cercada de controvérsia.
Logo, o país não sai da sinuca tão já. As eleições do ano que vem devem ocorrer envoltas nesse ambiente — e é plausível que o país continue encalacrado mesmo depois delas. Numa atmosfera de muita incerteza, a disputa eleitoral pode ferver ao mesmo ritmo das tensões sociais, com retroalimentação de ambos. PT, Ciro Gomes, Marina Silva, Jair Bolsonaro, João Doria; nomes colocados, qual seria capaz de abrir diálogos, propor pactos e estabelecer limites às contendas? De onde menos se espera é mesmo de onde nada vem.
A pergunta que não pode ser negligenciada é: quanto tempo a democracia brasileira suportará? Nossas tradições não nos garantem. Ademais, democracia não prescinde de lideranças. O diabo é enxergar onde elas estão. A ''ética da responsabilidade'' exigirá coragem para mudar, posturas morais, propostas reformistas no campo político; comunicação, diálogo e firmeza. Não há espaço para sofismar.

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Fonte: http://carlosmelo.blogosfera.uol.com.br/


terça-feira, 13 de junho de 2017

A serenidade do equilíbrio da maturidade

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L'Inspiration, de Eugène Delacroix 

“Recordo-me que outrora, quando tinha essa idade que se diz ser a idade do entusiasmo e do ímpeto da imaginação, como me faltava a experiência para tornar mais fortes essas belas qualidades. Interrompia frequentemente o meu trabalho, que muitas vezes me desagradava. A posição em que a idade nos coloca é uma ironia da natureza. Quando chegamos à  maturidade, temos uma imaginação mais arejada e viva do que nunca e sobretudo sossegaram as inconstâncias que a idade arrasta consigo, mas já temos os  sentidos gastos - estes pedem mais o descanso do que a agitação. E, no entanto, apesar de todas estas agruras, como é grande a consolação que nos é comunicada pelo trabalho! Como me sinto feliz por não ter de ser feliz como tanto o desejava no passado! De que selvática tirania afinal não me acabou por libertar a serenidade do equilíbrio da maturidade?! 
Então, a pintura era o que menos me preocupava. Temos de nos adaptar às nossas forças: se a partir de certa altura a natureza se recusa a trabalhar, não a devemos violentar, mas contentarmo-nos com o que ela nos dá; não nos deixarmos dominar pela sede de elogios, que passam como o vento, mas aprendermos a saborear o próprio trabalho e as horas deliciosas que se lhe seguem - profundamente convictos de que esse lazer foi conquistado graças a uma salutar fadiga, que salvaguarda a saúde da alma. Inspiração. A alma, por seu turno, influi sobre a saúde do corpo - impedindo que a ferrugem dos anos embote os mais nobres sentimentos.”
(Eugène Delacroix – pintor, principal expressão francesa do Romantismo; in Diário)  

segunda-feira, 12 de junho de 2017

Mercadores da hipocrisia

Por Ana Macarini

Imaginemos uma pessoa hipotética. Essa pessoa, no caso, seria alguém especial, superior a mim e a você. Superior a todo o resto da humanidade. Ao contrário de nós, reles mortais, a tal pessoa não possui telhados de vidro. O seu telhado é blindado; seguro, forte, inviolável. E na segurança de sua suposta superioridade, este ser elevado acredita – sem nenhuma dúvida -, que pode nos julgar a todos.
Não se trata de alguém sem pecados, posto que isso não existe. Trata-se de alguém cuja crença não admite erros em si mesma. Ou, na melhor das hipóteses, tem absoluta certeza de que seus erros são pequenos deslizes; ao passo que os erros alheios são indubitavelmente imperdoáveis.
Pecado é uma palavra originada do latim; seu significado mais antigo tinha relação com “tropeçar”. De acordo com a língua hebraica, pecar é algo como “mudar de direção”. Para os gregos antigos, pecar refletia a ideia de “errar o alvo”. Mas foram os romanos convertidos ao cristianismo que agregaram ao pecado o sentido mais carregado de culpa; foi a partir de então que pecado passou a ser algo de cunho religioso, “a violação das leis de Deus”. Foi neste ponto que o pecado passou a ser usado pelos seres humanos para infringir ao outro o sentimento de dolo por seus atos.
Ocorre que nem tudo se enquadra na categoria “pecado”. O que não deixa de ser extremamente curioso. Em verdade, OS SETE PECADOS CAPITAIS – que já foram utilizados como tema de um excelente e perturbador filme estrelado por Brad Pitt e Morgan Freeman -, são tão difíceis de se lembrar quanto o nome dos sete anões ou as sete cores do arco-íris.
Sendo assim, vai aqui uma forcinha. Figuram na lista dos sete pecados capitais: a ira, a gula, a luxúria, a preguiça, a avareza, a soberba e a inveja. Olhando assim, um de cada vez, parecem tão inofensivos, não é mesmo? Ou será que não?
O fato é que os tais SETE PECADOS CAPITAIS, são uma criação da Igreja Católica – mais precisamente do Papa Gregório I, com o intuito de determinar a origem de todos os outros vícios a que estamos sujeitos.
E o outro fato é que a tal lista não faz nenhum sentido, posto que não há um único de nós que tenha a mínima chance de passar por essa vida sem cometê-los. Eu, de fato, me arriscaria a dizer que a mãe de todas as nossas mazelas é a hipocrisia; e o pai… bem, o pai pode ser qualquer um, porque com uma mãe dessas, não há a menor chance de se dar à luz qualquer coisa que preste.
Façamos, pois, um favor às nossas gerações futuras: deixemos de ser hipócritas! Comecemos por admitir que errar é inerente à nossa constituição embrionária e que a nossa luta para sermos bons é diária e intransferível. Quem sabe, então, não precisemos mais de tantas listas, placas, multas ou ameaças para nos manter na linha… na linha imaginária que nasce em cada um de nós, e que constitui a fibra que há de nos ligar uns aos outros, juntos, na intenção de sermos um pouco mais decentes do que temos sido até hoje.

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Fonte: Contioutra

quarta-feira, 7 de junho de 2017

A maturidade do tempo: o aroma do vivido, recordação e lembrança

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La Condition Humanine, de René Magritte

Soren Kierkegaard


A recordação não tem apenas que ser exata; tem que ser também feliz; é preciso que o aroma do vivido esteja preservado, antes de selar-se a garrafa da recordação. Tal como a uva não deve ser pisada em qualquer altura, tal como o tempo que faz no momento de esmagá-la tem grande influência no vinho, também o que foi vivido não está em qualquer momento ou em qualquer circunstância pronto para ser recordado ou pronto para dar entrada na interioridade da recordação. 
Recordar não é de modo algum o mesmo que lembrar. Por exemplo, alguém pode lembrar-se muito bem de um acontecimento, até ao mais ínfimo pormenor, sem contudo dele ter propriamente recordação. A memória é apenas uma condição transitória. Por intermédio da memória o vivido apresenta-se à consagração da recordação. 
A diferença é reconhecível logo nas diferentes idades da vida. O ancião perde a memória, que aliás é a primeira capacidade a perder-se. Contudo, o ancião tem em si algo de poético; de acordo com a representação popular, ele é profeta, é divinamente inspirado. A recordação é, afinal, também a sua melhor força, a sua consolação: consola-o com esse alcance da visão poética. 
A infância, pelo contrário, possui em grau elevado a memória e a facilidade de apreensão, mas não tem o dom da recordação. Em vez de dizer-se «a idade não esquece o que a juventude aprende», poder-se-ia talvez dizer: «o que a criança retém na memória, recorda-se o ancião». Os óculos do velho são feitos para ver ao perto. Se na juventude é preciso usar óculos, as lentes servem para ver ao longe, pois que à juventude falta a força da recordação, que consiste em afastar, em pôr à distância. Mas a recordação feliz da velhice tanto quanto a feliz capacidade de apreensão da criança são dom da natureza, uma graça que concede a sua preferência aos dois períodos mais desprotegidos da vida, que contudo, em certo sentido, são também os mais felizes.

(Disponível em in Vino Veritas

domingo, 4 de junho de 2017

quinta-feira, 1 de junho de 2017

Palavras e pensamentos de uma despedida

Diz-me um amigo que, nestes tempos que estamos a viver, a impressão que se tem "é que a natureza está a fazer os bons partirem com mais frequência". Não vou por aí, mas a partida de algumas pessoas desola e deixa a humanidade menor. Faleceu Miguel Urbano Rodrigues, um homem de causas, com o qual podia-se não se concordar inteiramente com os seus pontos de vista, sem que isso significasse, contudo, desconhecer a sua estatura. Combatente antifascista, quando Portugal vivia a ditadura de Salazar, viu-se obrigado a deixar o país. Exilou-se no Brasil. Dono de uma escrita afiada, aos 91 anos, mantinha-se numa atividade intensa na cidade do Porto, e, em seus textos, não se cansava de pugnar por uma vida cheia de sentido e por um mundo melhor. Equivoca-se em aspectos da apreciação política? É provável, mas essa é uma questão para os juízos da história. Ao despedir-se da filha na última visita que lhe fez em Paris, disse: "não te verei mais, mas não tem importância". Ela não acreditou na profecia do pai, narrando a despedida nos seguintes termos: "Será que depois de tantas despedidas esta é mesmo a última? – pensei, ao acompanhar o carro deslizar no asfalto até se perder no lusco fusco do amanhecer. Com ele aprendi que a vida é uma paixão eterna e que o amor acaba. Mas renasce. Não se sabe de onde nem por quê. E que pode ser novamente tão inesperado, tão vasto e tão intenso, como se fosse uma coisa de Deus. Mesmo que Deus não exista." E ainda regista: (...) Apesar de polêmico, era calmo. Não levantava a voz numa discussão. E quando se irritava, ria.  A política sempre foi o centro de sua vida. Quando eu era pequena, ele a tratava como uma opção pelo sacrifício, como um desprendimento por um mundo melhor. Já mais velho conseguiu construir pontes afectivas com os netos, que passavam pelo conhecimento da geografia, pelo prazer de ensiná-los a jogar bridge ou por algo que emanava dele absolutamente sedutor, apesar de todas as suas contradições. Quando o visitava no Porto, onde passou a residir nos últimos anos, ficava impressionada com suas conexões e com a vida social que mantinha numa fase tão avançada da vida. De manhã caminhávamos cinco quilômetros pelo calçadão que margeia o Douro e íamos ao café onde ele ia todas as manhãs para ler o jornal, antes de sentar para escrever" (conforme carta publicada no jornal Expresso).