sábado, 30 de abril de 2016

'Como tragédia e como farsa': a proibição de reunião estudantil e o fascismo disfarçado de democracia

Em Ética a Nicomus e Política, duas obras fundamentais da humanidade, Aristóteles afirma teses como: 1) o homem é um animal político por natureza; 2) a política é a ciência da felicidade; 3) o homem desenvolve as suas potencialidades em sociedade; 3) a política deve garantir a maneira de viver que possibilite o alcance da felicidade, afinal todos os seres humanos têm como fim último da vida a felicidade. Pois bem, o que diria Aristóteles do Brasil dos últimos tempos, e sobretudo de agora (2016)? Há quem sustente a hipótese de que ele "chegaria à conclusão de estar diante de uma outra categoria de seres, não [originários] da política, com uma parte animal evidente, um ser de outro mundo, [pois] o bem comum que a política deve garantir [no Brasil de Eduardo Cunha e Bolsonaro] não aparece nem como farsa". Não seria para menos, afinal presenciar-se, por exemplo, um deputado-réu, corrupto com milhões depositados em contas na Suíça, presidindo uma sessão do parlamento para derrubar uma Presidente contra a qual não há nada que desabone a sua idoneidade pessoal, e, na mesma sessão, ter-se um deputado que, justificado o seu voto pela derrubada da mandatária, homenageia um torturador, só pode levar à ilação de que estamos em outro mundo (dos horrores). O historiador-sociólogo Immanuel Wallerstein cunhou uma expressão em inglês que, em língua portuguesa, foi traduzida como 'fascismo democrático', mas talvez a tradução que melhor a represente na língua de Camões seja fascismo disfarçado de democracia. É nesse sentido que se move muito do teatro político brasileiro hoje.  O mais novo episódio nessa direção ocorreu em Minas Gerais, envolvendo a UFMG: uma juíza de primeira instância proibiu que o Centro Acadêmico de Direito se reunisse fazendo uma assembleia estudantil para (pasmem!) discutir a situação política do Brasil na atualidade. É sempre bom lembrar que, no período que antecedeu o golpe civil-militar de 1964, mergulhando o país numa ditadura de duas décadas, muitas pessoas bem intencionadas estavam nas ruas (em manifestações como as 'Marchas com Deus, pela Família e pela Liberdade') bradando contra o Presidente João Goulart - por decisão consciente ou insufladas pelo golpismo da imprensa, mas, seja como for, sem perceberem os riscos do que estava por vir. Só se deram conta do erro cometido quando se viram às voltas com as consequências do golpe: muitos inclusive perseguidos e presos (um pouco sobre os arrependidos do golpe de 1964 pode ser visto aqui: https://jeocaz.wordpress.com/2008/08/14/os-arrependidos-do-golpe-militar-de-1964/). Não aprender com as lições da história é um exercício de estupidez. O arguto escritor lusitano Miguel de Souza Tavares, que há anos acompanha a vida política do Brasil, foi preciso ao analisar a situação do país: apontou as consequências de caos social, de conflito, que podem vir e o amadurecimento das condições para uma intervenção militar (a sua análise pode ser vista aqui: https://youtu.be/kPKGhgv53ek). É irônico que, do outro lado do Atlântico,  consiga-se perceber a possibilidade de desastre, enquanto por aqui, até em segmentos supostamente esclarecidos, alimente-se o golpismo. Reproduzo aí abaixo a notícia do bizarro caso em que a juíza de primeira instância proibiu a reunião dos estudantes de direito da UFMG - ou, parafraseando Wallerstein, quando se tem o fascismo disfarçado de democracia. 

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Xadrez do golpe civil-militar de 1964


Por Luís Nassif
(GGN - O Jornal de Todos os Brasis) 

Alertei recentemente para os riscos de uma ofensiva na Primeira Instância contra direitos básicos. As sucessivas investidas de juízes e Secretários de Segurança contra assembleia estudantis é um sinal preocupante de avanço do fascismo.
Se se permitir esse jogo, em breve não haverá mais liberdade de expressão no país.

Do Centro Acadêmico Afonso Pena da UFMG
DECISÃO JUDICIAL PROÍBE REUNIÃO DE ESTUDANTES DO CURSO DE DIREITO DA UFMG PARA DISCUTIR MOMENTO POLÍTICO DO PAÍS.


Na quarta-feira, dia 27 de abril, o Centro Acadêmico Afonso Pena, da Faculdade de Direito da UFMG, lançou uma convocatória de Assembleia Geral Extraordinária (AGE) com o objetivo de discutir o momento politico vivenciado pelo país. A pauta de convocação da Assembleia elencava os seguintes pontos para discussão e deliberação:

1. Posicionamento político das alunas e dos alunos do curso de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais perante o processo de Impeachment da Presidente da República;

2. Possíveis desdobramentos e medidas a serem tomadas;

As convocatórias foram fixadas em todos os andares da Faculdade de Direito, dando-se a ampla publicidade exigida pelo estatuto (Art.12 §2 º do Estatuto do Centro Acadêmico Afonso Pena). Além disso, o edital foi amplamente divulgado pela internet, e representantes do centro acadêmico passaram em sala de aula de modo a se divulgar a reunião e convidar todos os alunos a dela tomarem parte.

Todavia, na sexta-feira, dia 29, pouco antes das 18 horas, horário marcado para a terceira e última chamada para instalação da AGE, os estudantes foram surpreendidos por um oficial de justiça, comunicando a prolação de uma decisão judicial impedindo a realização da reunião. Dois alunos do curso de graduação em Direito da UFMG impetraram, às 23 horas do dia anterior, uma “ação de obrigação de não fazer” em sede de tutela de urgência, visando determinar a nulidade da convocatória, a não-realização de quaisquer AGEs sobre o processo de impeachment da presidenta da república, e vetando eventual deflagração de “movimento grevista”. Uma juíza da Comarca de Belo Horizonte deferiu a liminar intentada, proibindo, inclusive, a convocação de qualquer nova assembleia versando sobre o mesmo assunto, ainda que dentro das formalidades estatutárias. A decisão baseava-se em: alegações de aparelhamento do Centro Acadêmico; ligação com partidos políticos; conivência com a presença de moradores de rua no prédio da faculdade e uma suposta convocação de movimento grevista, dentre outras.
Nesse sentido, é latente a violação não somente dos preceitos da nossa Constituição, nomeadamente os Arts. 3 e 5, IV e XVI, como, igualmente, ao art. 13 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos e art. 19 da Declaração Universal dos Direitos do Homem, que versam sobre os direitos de liberdade de expressão e de reunião, num claro cerceamento do debate público. O Centro Acadêmico Afonso Pena, em consonância com o histórico de luta e resistência, recorrerá desta decisão visando garantir o direito a livre manifestação política dos estudantes.


sexta-feira, 29 de abril de 2016

Carta aberta a um defensor de golpes, da ditadura e da tortura



Faz escuro mas eu canto,
porque a manhã vai chegar (...)
Quem sofre fica acordado
defendendo o coração.
(Thiago de Mello)

Oh, pedaço de mim/Oh, metade arrancada de mim.
(Chico Buarque)

Sou Maria Garcia Meirelles, amazonense de Parintins, mãe de Thomaz Antônio da Silva Meirelles Neto, ex-secretário geral da União Brasileira de Estudantes Secundaristas (UBES), preso, torturado e assassinado na prisão. Escrevo-lhe porque o senhor [deputado Jair Bolsonaro] matou meu filho outra vez no domingo passado [17/04], em sessão da Câmara de Deputados, ao fazer uma apologia do crime exaltando seu colega de armas, coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, torturador e assassino reconhecido, responsável por 60 mortes e por mais de 500 casos de torturas cometidos no Doi-Codi entre 1970-1974.
Neste período, capitão Bolsonaro, Thomazinho combatia o golpe militar que rasgou a Constituição, derrubou o presidente eleito pelo voto popular, instituiu a censura e suprimiu as liberdades democráticas. Por isso, em 1970, foi preso e torturado no Doi-Codi. Condenado, cumpriu pena. Libertado dois anos depois, teve que se esconder. Foi aí que viajei ao Rio para encontrá-lo, na clandestinidade, levando um pouco do sabor de sua infância – uma paçoquinha que eu mesma fiz no pilão e que ele gostava tanto.
Nosso encontro foi numa noite de fevereiro de 1973 em Copacabana. Senti dor imensurável ao ver o fruto das minhas entranhas machucado, lanhado, com marcas de tortura e cicatrizes no corpo. Era um pedaço de mim que estava ferido. Provou a paçoquinha e deitou a cabeça no meu regaço, sempre calado, discreto e triste. Eu lhe fiz muito carinho, sem saber que era uma despedida. Essa foi a última vez que o vi.

A guerra suja
Meu filho voltou a ser preso em 7 de maio de 1974, quando viajava do Rio a São Paulo, conforme documentos do DOPS/SP e relatório do Ministério da Marinha assinado pelo ministro Ivan Serpa. Cinco anos depois, o nome de Thomazinho constava numa lista publicada pelo Correio da Manhã
(03/08/79) com 14 presos mortos pelos serviços secretos das Forças Armadas, mas somente em 1995 ele foi considerado oficialmente desaparecido. O corpo até hoje não foi localizado.

Durante anos, não assumi o luto por meu filho, sempre com a esperança de reencontrar a quem me fez mãe. É que quando ele nasceu, eu também nasci como mãe. Admitir sua morte era, além de amputar uma parte de mim, matar minha maternidade. Meu filho era muito inteligente, doce, educado, generoso. Um príncipe. Todos gostavam dele. Eu não o esqueci nem um minuto, não podia imaginar um amanhã sem ele. Nunca soube de seu paradeiro. Levou tempo para ter a certeza de seu assassinato.
A notícia foi confirmada quatro décadas depois pelo seu colega, capitão Bolsonaro, o ex-delegado do DOPS, Cláudio Guerra, atirador de elite, que escreveu o livro “Memória de uma Guerra Suja” para exorcizar os demônios que o atormentavam. Em entrevista a Alberto Dines, em junho de 2012, no Observatório da Imprensa, ele contou histórias de assassinatos e torturas durante a ditadura militar:
“Hoje mais uma história triste para esclarecer é [do] desaparecido político Thomaz Antônio da Silva Meirelles. É… recebi um chamado do coronel Perdigão e fui ao quartel da Barão de Mesquita (…) Ali o coronel Perdigão me entregou um corpo num saco preto, né, (…), quando chegou em Campos abri o saco, vi que se tratava de um homem aparentando ter mais ou menos 40 anos. E muito machucado, ele estava apenas vestido com um calção, não tinha as unhas das mãos, estavam arrancadas, o rosto bem desfigurado pelas torturas, com sinais de queimaduras…”.

Viva a morte!
A brutalidade da cena agride a humanidade. Quanta dor! Não desejo esse sofrimento para ninguém, capitão Bolsonaro, nem para dona Olinda (a sua mãe), nem para Michelle (sua esposa), nem para qualquer um de seus filhos – Eduardo, Flávio, Carlos, Renan e Laura. Ninguém merece isso, nem mesmo um execrável torturador. No meio da barbárie, luto para preservar minha humanidade. Vocês tiraram duas vidas: a minha e a do meu filho.
Aconselhada a pedir indenização, não o fiz. O que queria era a verdade, nada mais, saber o paradeiro do meu filho em cujo túmulo em lugar desconhecido não pude colocar uma flor ou acender uma vela.

Bolsonaro Hitler
O assassinato de Thomazinho como de tantos outros foi uma extrema covardia. Ele estava preso, desarmado, legalmente sob proteção do Estado. Os assassinos, com salários pagos pelo contribuinte, envergonham o Exército nacional por praticarem um crime abjeto contra a humanidade, conforme definido pelo Direito Internacional. Como pode um ser humano se degradar tanto a ponto de torturar ou de apoiar a tortura?
O senhor defendeu a tortura cometida por um coronel armado contra Dilma Rousseff, uma mulher indefesa.
A sua declaração de voto, capitão Bolsonaro, revela covardia, que não me surpreende, pois o senhor é um notório agressor profissional de mulheres. Ofendeu Maria do Rosário quando ela defendeu a Comissão da Verdade, insultou Benedita da Silva, ameaçou a advogada indígena Joênia Wapichana, a cantora Preta Gil, a ministra Eleonora Menucucci, a senadora Marinor Brito e até Marta Suplicy quando ela defendia projeto de lei que criminaliza a homofobia. Tudo isso escancaradamente, publicamente.
Racista, homofóbico e fascista, a sua declaração em favor da tortura ecoou como o grito necrófilo e insensato de “Viva la Muerte” do general espanhol José Millán-Astray, em 12 de outubro de 1936, criticado por Miguel de Unamuno, reitor da Universidade de Salamanca, para quem só um mutilado mental carcomido pelo ódio é capaz de gritar “morra a vida”.
Capitão Bolsonaro, no Congresso do Cunha comandado por um réu no STF, o senhor votou e declarou que votava “sim” porque era a favor da tortura.
Mais claro não canta um galo. Sua declaração de voto a favor da tortura me deu a certeza de que aquilo que está acontecendo no Brasil é mesmo um golpe. O Fora Dilma equivale a um Fora Thomazinho e Fora todos aqueles que combateram o outro golpe, o de 1964.
Tenho pena do senhor pela besta-fera em que se transformou. Morro de vergonha de vê-lo representando parcela do povo brasileiro no Congresso Nacional.

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PS – Texto do Professor José Ribamar Bessa Freire (Professor da Pós-graduação em Memória Social da UNI-RIO), a partir da entrevista de Maria Garcia Meirelles (já falecida) concedida a Jocilene Chagas, em 1995.


quinta-feira, 28 de abril de 2016

Enigma, tempo e desperdício de vida



“Alguns disseram que a chave do enigma era a sorte, outros a terra, outros a luz. Zadig disse que era o tempo.
- Nada é mais longo – acrescentou –, porquanto é a medida da eternidade; nada é mais curto, porquanto falta a todos os nossos projetos; nada mais lento para quem espera; nada mais rápido para quem desfruta a vida; estende-se em grandeza até o infinito; divide-se até o infinito em pequenez; todos os seres humanos o negligenciam, todos lamentam a sua perda; nada se faz sem ele; faz esquecer tudo o que é indigno de posteridade  e imortaliza as grandes coisas.
A assembleia concordou que Zadig estava certo.
A pergunta seguinte foi: ‘Qual é a coisa que se recebe sem agradecer, que se usufrui sem saber como, que é entregue aos outros quando não se sabe onde é que se está e que se perde sem perceber?'
Cada um deu a sua explicação. Somente Zadig adivinhou que era a vida.”

(Voltaire - Zadig ou o destino, São Paulo: Escala, p. 108). 

segunda-feira, 25 de abril de 2016

A sombra do passado e o futuro como possibilidade



Por Ivonaldo Leite

Num livro de já algumas décadas, um budista zen nos disse, em palavras aproximadas, mais ou menos o seguinte: “vós, ocidentais, quando pretendem entender uma flor, dividem as suas partes e analisam a sua composição química; entendê-la, para vós, é destruí-la; para nós, entender uma flor, é sentir-se flor, procurar observar o mundo com os olhos de flor”.
Nos albores da juventude, quando fui atingido pelos resquícios do lixo autoritário da ditadura militar - que me afastou do meu curso universitário por trinta dias, por causa das minhas posições político-ideológicas, com base em dispositivos do decreto 477, o AI 5 dos estudantes -, sempre estive a pensar na referida afirmação budista. O que, de imediato, me remetia para os sentidos da história.  
Conforme escreveu o César Benjamin num artigo de 2010 (‘Reminiscência: 1968 e depois’, na Revista Caros Amigos), há duas assimetrias que devem ser levadas em consideração quando se compara passado e presente. A primeira é que o passado aparece como um tempo condensado, pois já foi “decantado e filtrado pela ação seletiva da memória, que só retém os momentos e aspectos mais marcantes e decisivos. O presente, por sua vez, decorre no tempo estendido do quotidiano. Com as tintas mais carregadas por aquela seleção, fica aberto o caminho para idealizações e caricaturas. O passado tende a parecer muito melhor ou muito pior do que, de fato, foi para os que viveram ele”. A outra assimetria é em relação ao futuro. Como futuro do passado ele já está encerrado em uma trajetória que, vista do presente,  parece ter sido a única possível. “Nada sabemos do amanhã, mas, ao olharmos para trás, já sabemos o que aconteceu depois. Por isso, muitos livros de memórias, implícita ou explicitamente, atribuem um sentido predefinido aos acontecimentos vividos, como se o presente, tal como ele é, fosse um ponto de chegada natural: tudo aconteceu para que estivéssemos aqui, do jeito em que estamos. Assim, o passado é reduzido à condição de um ‘presente incompleto’, o ‘presente imaturo’, o que não tem sentido nenhum”.
Sob determinadas circunstâncias, o passado sobrevive como uma sombra a encobrir e obstruir o presente. Todavia, em última instância, é sempre o indivíduo que, pelas frestas das probabilidades, traça o seu percurso. Resignar-se ou superar desafios. É neste último caso que faz sentido falar sobre o futuro como possibilidade. Compreender as situações, em suas totalidades, e agir.
Os antigos gregos denominavam épokhé o procedimento que deveria ser buscado para  se entender uma dada situação, isto é, a procura de um estado de repouso mental que permitisse captar/observar todos os seus ângulos. É de se dizer que o valor dessa perspectiva é mais instrutivo do que operacional em si mesmo, mas exatamente por isso ela tem, digamos, uma função metodológica. Abre-nos caminho para uma ideia de futuro como plano aberto, em construção, e talvez ajude as pessoas a entenderem a vida sentindo a vida, a entenderem a flor sentindo-se flor.
   

domingo, 24 de abril de 2016

Encruzilhadas Abertas da América Latina-ALAS: a negação do que somos e a imitação do que não somos

Aí abaixo a convocatória do XXXI Congresso Latino-americano de Sociologia (ALAS), fórum que se tem consolidado como espaço interdisciplinar de diálogo de sociólogos, historiadores, antropólogos, cientistas políticos, economistas e filósofos da América Latia. Enfim, um espaço de diálogo da ciência social da região. Terá lugar no Uruguay no próximo ano, tendo como tema 'As Encruzilhadas Abertas da América Latina' - tema que, de imediato, nos remete ao clássico 'As Veias Abertas da América Latina ', de Eduardo Galeano. Ao que tudo indica, pelo ciclo político que se está a encerrar em nossa região e pelo que se inicia, demandar-se-á da ciência social latino-americana um esforço analítico de grande monta tendo em conta o tipo de futuro que nos aguarda. Parece-me que, dentre outras coisas, estará em jogo a nossa própria identidade como latino-americanos. Não recusamos o cosmopolitismo, mas a questão é outra: pelas perspectivas das forças que estão subindo ao poder em países da América Latina ou que se encontram na iminência disso, entra em cena o jogo de 'negar o que somos e imitar o que não somos'. Apoio e divulgação ao ALAS como um momento para realizar esse debate. 


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La sociología cuenta con una larga tradición en el pensamiento social latinoamericano, que se nutre de los aportes de sus fundadores y de todos aquellos que han desarrollado su actividad en este continente. Su desarrollo es producto de los avances técnicos y metodológicos, de la producción teórica y de las luchas políticas y sociales que han tenido lugar en nuestras sociedades y universidades en el último siglo. En este recorrido ha alcanzado una fortaleza institucional que hace posible  el desarrollo de un espacio de pensamiento social y de una disciplina rica, diversa y pluralista en términos teóricos y metodológicos.  Las sociólogas y sociólogos han hecho y hacen grandes aportes científicos junto con su compromiso personal en la lucha por un mundo mejor.
Los cambios recientes en la región muestran tendencias contradictorias; por un lado, la persistencia de viejas herencias del desarrollo latinoamericano, marcado por sociedades duales con contradicciones estructurales, desigualdades económicas y formas de dominación simbólica y cultural de pueblos, grupos y colectivos  subalternos; por otro lado, la emergencia de nuevos espacios de empoderamiento de sujetos colectivos y grupos sociales postergados, de participación ciudadana y políticas públicas afirmativas y distributivas.
Las dos primeras décadas del siglo XXI encuentran a nuestro continente una vez más signado por ciclos de crisis y búsqueda de desarrollos alternativos en un contexto global convulsionado por el acelerado avance del capitalismo y los fuertes cambios en la geopolítica mundial.  Estos procesos contradictorios tensionan la sociedad, la política y la economía de nuestros países y territorios, produciendo efectos perversos debido a su crecimiento acelerado que profundiza las desigualdades, produce exclusión, violencia y destruye los recursos naturales y los patrimonios colectivos, poniendo en riesgo la vida de las próximas generaciones. A lo largo del continente se conforman nuevas organizaciones y movimientos sociales que se consolidan y avanzan en el reconocimiento de sus reclamos, en su capacidad propositiva, de denuncia y de resistencia cuando las circunstancias históricas lo reclaman. Asimismo, estas acciones se multiplican a través de redes regionales y globales que permiten potenciar sus esfuerzos y difundir y denunciar las distintas situaciones que aquejan a nuestras sociedades.
En este marco contradictorio, de tensiones y conflictos en varios países de la región, el Estado, en algunos países, ha recuperado protagonismo y ha mostrado  intentos para encaminar, con diferente grado y vigor, reformas sociales con políticas públicas inclusivas de promoción de derechos. Estas reformas lograron mejorar la situación de partida de numerosos grupos sociales, sacando de la pobreza y la exclusión a millones de latinoamericanos y latinoamericanas. No obstante, persisten profundas desigualdades sociales y crece la disconformidad en diversos sectores de la población respecto a la insuficiencia de estos cambios sociales, planteando la necesidad de profundizar la democratización de nuestras sociedades y los estilos de desarrollo implementados.
En otros países, la continuidad de los modelos de cuño neoliberal han profundizado a niveles impensables la miseria, la violencia y la corrupción, derrumbando los pilares básicos de la vida social y destruyendo los lazos de sociabilidad inherentes a la convivencia democrática.
En este escenario, han emergido vigorosos debates en el pensamiento social y sociológico latinoamericano, que han fortalecido sus compromisos históricos de emancipación y rigurosidad científica, aportando en variadas dimensiones y planos nuevos enfoques, perspectivas y alternativas para comprender los múltiples desafíos y oportunidades a las que se enfrentan nuestras sociedades.
En este escenario convocamos a la sociología del continente, al más amplio debate sobre nuestra América Latina, sus desafíos actuales y sus alternativas, asumiendo nuestro compromiso con la búsqueda y construcción teórica y metodológica necesaria para la comprensión de los nuevos escenarios, para los cambios en pos de mejores vidas para nuestros ciudadanos.
Con la realización de este Congreso y a la luz de la constelación de tensiones señaladas, nos proponemos contribuir al fortalecimiento de la disciplina, de su espíritu crítico y de su reflexión activa. De esta forma, queremos reafirmar en este evento el compromiso de miles de intelectuales en la construcción colectiva de nuevas formas de abordaje de los problemas sociales, abriéndonos a la riqueza de contribuciones con que cuenta nuestro colectivo a lo largo y ancho del continente. De esta forma, podremos enfrentar con mayor vigor la lucha por la justicia y la igualdad en el continente, comprendiendo la complejidad de tal objetivo en el marco del respeto a la diversidad y pluralidad de nuestros pueblos.
Los esperamos en Montevideo en 2017.


quinta-feira, 21 de abril de 2016

Uma outra universidade: crítica e esperançosa

Nos debates em que participo e em textos que tenho escrito sobre o ensino superior, costumo referir, como já o fiz aqui mais de uma vez, o significativo contributo do ex-Reitor da UFBA Naomar de Almeida Filho para repensarmos a universidade brasileira, pondo-lhe a altura dos desafios que ela tem diante de si. Concorde-se com ele total ou parcialmente (ou até mesmo discordando)  não se pode deixar de reconhecer o seu esforço (já traduzido em ações práticas na gestão) no sentido de transformar a universidade que temos.  Da minha parte, isso passa, dentre outras perspectivas, pela ideia dos Bacharelados Interdisciplinas, pela rediscussão dos departamentos, pela reconfiguração de instâncias decisórias internas, etc. Em última instância, o que falta à universidade é projeto, de concepção e de procedimentos. Assim sendo, o debate não pode ficar circunscrito ao plano de querelas entre pessoas, da repetição de padrões administrativos estabelecidos e da troca de formas que reproduzem o mesmo conteúdo: 'fazer mais do mesmo'. Na busca de uma outra universidade, publico aí abaixo o capítulo final do livro de Naomar intitulado 'Universidade Nova: Textos Críticos e Esperançosos' (Coedição Editora da UnB e EDUFBA).  
  




Por Naomar de Almeida Filho

Nos textos centrais da última seção deste livro, critiquei duramente a atual estrutura curricular da educação universitária brasileira, identificando a origem dos seus modelos de formação nas universidades européias do século XIX, principalmente nas escolas superiores francesas e nas instituições lusitanas, herdeiras tardias da universidade escolástica. As estruturas acadêmicas e institucionais das universidades brasileiras muito sofreram com a reforma universitária imposta pelo governo militar no final dos anos 1960, ainda hoje questionada por seus efeitos deletérios sobre a educação superior. Depois, nos anos 1990, tivemos um período de quase total desregulamentação da educação superior e abertura de mercado ao setor privado de ensino.
Resultado: a universidade brasileira terminou dominada por um poderoso viés profissionalizante, com uma concepção curricular simplista, fragmentadora e distanciada dos saberes e das práticas de transformação da sociedade.
Tais fatores tornaram vigente em nosso país uma arquitetura de formação universitária bastante confusa, talvez sem similar no mundo, caracterizada por múltiplas titulações, numerosas designações, produzidas em programas com reduzido grau de articulação. Os programas das carreiras profissionais mostram-se cada vez mais estreitos, bitolados, com pouca flexibilidade e criatividade, distanciado das demandas da sociedade, e longe, mas muito longe mesmo, de cumprir o mandato histórico da Universidade como formadora da inteligência e da cultura nacional.
Algumas reações a este indesejável cenário têm acontecido em dois planos.
No plano nacional, registro o processo de debates entre os dirigentes da rede federal de educação superior, que culminou com um documento intitulado Proposta da ANDIFES para a reestruturação da educação superior no Brasil (ANDIFES, 2004). Além de apresentar proposições sobre autonomia, financiamento e política de recursos humanos para o sistema federal de ensino superior, este documento explicitava, dentre suas estratégias:
¾      Promover as alterações que se fizerem necessárias no ensino de Graduação e Pós-Graduação, de modo a garantir aos estudantes a condição de formação cidadã, com ênfase nos valores éticos e cívicos que devem orientar a vida numa sociedade justa e democrática.
¾      Revisar os currículos e projetos acadêmicos para flexibilizar e racionalizar a formação profissional, bem como proporcionar aos estudantes experiências multi e interdisciplinares, formação humanista e alta capacidade crítica.
Nos planos locais, destacaria uma proposta rejeitada e dois experimentos em curso. A proposta foi a do Bacharelado em Humanidades, apresentada por Renato Janine Ribeiro à Universidade de São Paulo, que alcançou notoriedade não por seus inegáveis méritos de conteúdo e oportunidade histórica, mas por ter sido rechaçada justamente pela instituição universitária de maior prestígio nacional (RIBEIRO, 2003).
Um dos experimentos surgiu no setor privado de ensino: o Curso de Administração de Empresas da Faculdade Pitágoras. A partir de 2004, esse curso passou a ser composto de um ciclo básico, fortemente concentrado em estudos clássicos inspirados no programa dos liberal arts colleges dos EUA, com um núcleo propedêutico antecedendo o ciclo profissional (MOURA CASTRO, 2002).
O outro experimento é recente: a inovadora arquitetura curricular da Universidade Federal do ABC, inaugurada em 2005, na Grande São Paulo. Trata-se de uma universidade tecnológica, onde os alunos são selecionados para um programa inicial de Bacharelado em Ciência e Tecnologia, pré-requisito que antecede a formação de Licenciatura em áreas básicas (Biologia, Física, Matemática, Química e Computação) e Engenharias.
Apesar dos problemas acarretados pelo pioneirismo de suas propostas, tais experimentos têm mostrado inegável viabilidade. Entretanto, para cumprir o desiderato acima apontado, precisamos de maior abrangência e radicalidade na transformação de todo o sistema de educação universitária no Brasil. É necessário avançar para além de experimentos, até porque projetos isolados podem ser facilmente absorvidos como vanguardismo por um status quo impenetrável e robusto, tolerados precisamente por demonstrarem a suposta capacidade de inovação de um sistema que é, de fato, conservador.

*        *        *
Hoje, a universidade pública brasileira encontra-se num momento privilegiado, tanto em termos de conjuntura externa quanto de conjuntura interna, para consolidar, ampliar e aprofundar processos de transformação já em curso. Disso estou convencido ao avaliar contexto e condições atuais da nossa Universidade Federal da Bahia.
Os Conselhos Superiores da UFBA, atendendo a um dos itens da pauta local da greve estudantil de 2004 (ver Texto 17), já haviam anteriormente deliberado iniciar um processo de profunda revisão da estrutura, função e compromisso social da nossa universidade, visando pensar seu futuro enquanto instituição. Durante o ano de 2005, algumas iniciativas foram tomadas nesse sentido, como a apresentação de estudos preliminares do Plano Diretor que, infelizmente, foram bloqueadas pela reação de algumas unidades (ver Texto 5).
Quando postulamos a reeleição para a Reitoria da UFBA, construímos um novo programa de trabalho realçando o tema da reestruturação curricular. Com toda clareza, declarei a intenção de buscar fomentar em nossa instituição uma reforma universitária verdadeira, aquela que deve ocorrer no plano da educação, e não tímidas e hesitantes proposições de viabilização financeira e rearranjo institucional, nos planos normativo e administrativo. Em nosso programa, constava um item que, parafraseando a Escola Nova de Anísio Teixeira, chamamos de Projeto UFBA Nova, com os seguintes tópicos:
¾      abertura de programas de cursos experimentais e interdisciplinares de graduação, que poderiam ser não-profissionalizantes ou não-temáticos, com projetos pedagógicos inovadores, em grandes áreas do conhecimento: Humanidades, Ciências Moleculares, Tecnologias, Saúde, Meio Ambiente, Artes.
¾      consolidar programas de renovação do ensino de graduação, por meio de projetos acadêmico-pedagógicos criativos e consistentes, reduzindo as barreiras entre os níveis de ensino como, por exemplo, oferta de currículos integrados de graduação e pós-graduação.
¾      incentivar reformas curriculares naqueles cursos que ainda não apresentaram propostas de atualização do ensino de graduação.
Empossado em segundo mandato, já nas primeiras reuniões dos Conselhos Superiores propus retomar e ampliar as discussões sobre a revisão do Plano de Desenvolvimento Institucional; ambos os conselhos aprovaram por unanimidade nossa moção. Com esse intento, uma comissão bicameral, com a participação de dirigentes, docentes, servidores técnico-administrativos e representantes discentes foi designada para planejar e organizar o processo de discussão. Em seus trabalhos preliminares, a Comissão propôs pauta e estratégia de organização, incluindo cronograma que contemplava a promoção de seminários conceituais e temáticos, congressos internos nas unidades e uma instância geral de debates. Na pauta proposta, aprovada pelos Conselhos Superiores, destaca-se o item Arquitetura Acadêmica como uma das prioridades no processo de repensar a Universidade.
Convidei para dialogar alguns docentes e pesquisadores, aqueles cujo interesse por temas de vanguarda acadêmica eu conhecia, em especial sobre questões filosóficas e metodológicas relacionadas à interdisciplinaridade. Inicialmente, reuníamos representantes de áreas de conhecimento afins, porém logo começamos a misturar origens institucionais, epistemológicas e paradigmáticas, em grupos gerais de discussão. Em paralelo, uma equipe técnica da Pró-Reitoria de Ensino de Graduação, com a colaboração de um grupo de trabalho ad-hoc designado pela Reitoria, dedicou-se a avaliar aspectos pedagógicos e operacionais da proposta, bem como seu marco legal.
Enfim, o projeto UFBA Nova começou a tomar forma e deixou de ser uma boa intenção num documento retórico de política institucional. Em setembro de 2006, foi apresentado formalmente ao Conselho Superior de Ensino, Pesquisa e Extensão e ao Conselho Universitário, órgãos máximos de deliberação da UFBA, que determinaram à nossa equipe levar a proposta às unidades, incluindo-a como parte do processo de discussão do PDI. Antes de descrevê-lo com algum grau de detalhamento, preciso ainda contar como o projeto UFBA Nova tornou-se
Universidade Nova.
Nos informes de uma Reunião da ANDIFES, realizada em Recife como parte das comemorações dos sessenta anos da Universidade Federal de Pernambuco, comuniquei ao Conselho Pleno o andamento do nosso projeto. A acolhida foi calorosa, com vários reitores se posicionando como parceiros em potencial. Apresentamos esboços da proposta à Secretaria de Ensino Superior do MEC que, de imediato, interessou-se e convidou-nos a uma oficina de trabalho para colaborar na discussão do projeto da Universidade do Mercosul. Retornei à ANDIFES, na Pauta regular, para apresentar em maior detalhe a proposta, já com a nova denominação. Vários colegas reitores de universidades federais decidiram se engajar em uma rede de discussão e acompanhamento do projeto, com grupos de trabalho e seminários locais e nacionais.
Neste texto, apresento uma súmula do projeto Universidade Nova, no seu formato mais atual, resultante da construção técnica interna e externa à UFBA, porém ainda preliminar, aberto a contribuições, ampliações e desdobramentos. Além disso, faço um balanço das discussões com estudantes, docentes e servidores, além de cidadãos e cidadãs mobilizados pela necessidade de transformação da universidade, que participaram das mais de cinqüenta apresentações, audiências públicas, debates, reuniões de trabalho. Isto tudo significou decisiva ampliação do escopo original da proposta, honrando ainda mais sua inspiração anisiana, creditada e justificada na seqüência final do texto.

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A proposta hoje denominada de Universidade Nova aponta para uma transformação radical da atual arquitetura acadêmica da universidade brasileira, visando superar desafios e corrigir alguns dos defeitos aqui analisados. As principais alterações na estrutura curricular postuladas no projeto encontram-se  esquematizadas na Figura 4. Em termos de arquitetura acadêmica, trata-se da implantação de um regime de três ciclos de educação universitária:
Primeiro Ciclo: Bacharelados Interdisciplinares (BI), propiciando formação universitária geral, como pré-requisito para progressão aos ciclos seguintes;
Segundo Ciclo: Formação profissional em licenciaturas ou carreiras específicas;
Terceiro Ciclo: Formação acadêmica, científica ou artística, de pós-graduação.
A introdução do regime de ciclos implicará ajuste da estrutura curricular tanto dos cursos de formação profissional quanto da pós-graduação. Além disso, novas modalidades de processo seletivo serão necessárias, tanto para o primeiro ciclo quanto para as opções de prosseguimento da formação universitária posterior. Pretende-se, dessa maneira, construir no Brasil um modelo de educação superior compatível, no que for vantajoso para o contexto nacional, com o Modelo Norte-Americano (de origem flexneriana) e com o Modelo Unificado Europeu (Processo de Bolonha).
A proposta de implantação dos Bacharelados Interdisciplinares terá formatação e detalhamento definidos pelas universidades que aderirem à proposta, dentro da sua autonomia. Não obstante, algumas proposições iniciais já podem ser sugeridas, consentâneas com idéias que circulam nos meios acadêmicos, nacionais e internacionais, algumas delas já concretizadas institucionalmente.
Em termos de estrutura curricular, o BI compreende três modalidades de componentes curriculares: CT – Cursos-Tronco; FG – Formação Geral, FE – Formação Específica. A carga curricular do Bacharelado Interdisciplinar poderá basear-se no conceito de Blocos Curriculares, definidos como conjunto de módulos (cursos, disciplinas, atividades, programas, trabalhos orientados) cobertos pelos alunos durante o semestre ou quadrimestre letivo. O BI terá duração de dois a três anos, abrangendo grandes áreas do conhecimento.
O conceito de Cursos-Tronco provém diretamente de Anísio Teixeira. Define-se como formação obrigatória, paralela e seqüencial durante todo o programa do BI. No estágio atual de construção da proposta de estrutura curricular do BI, há dois Cursos-Tronco propostos: (a) Língua Portuguesa como Instrumento de Comunicação, cobrindo da estrutura da língua à expressão oral e escrita nas áreas de concentração do BI. (b) Línguas Estrangeiras Modernas (Espanhol, Francês, Inglês, Alemão, Italiano), visando ao uso instrumental do idioma estrangeiro selecionado. Alunos com proficiência comprovada serão dispensados da obrigatoriedade, mas poderão optar por outro idioma.
A Formação Geral compõe-se de componentes curriculares (módulos, cursos, disciplinas, atividades etc.) de escolha opcional em cada um dos Eixos Temáticos Interdisciplinares (ETI), com forte incentivo à oferta de blocos integradores. Os Eixos Temáticos Interdisciplinares compreenderão conteúdos como os seguintes:
      Cultura Humanística: Ética, Política & Cidadania; Qualidade de Vida (Esporte, Saúde, Meio Ambiente, Consciência Ecológica); Formação das Sociedades Contemporâneas (com foco na sociedade brasileira).
      Cultura Artística: Estética; Panorama das Artes (Histórias, Escolas, Estilos); Literatura (como ler Poesia, Prosa e Drama); Exposição às Artes (participação em eventos culturais, com créditos); Iniciação Artística (Música, Artes Plásticas, Teatro, Dança, Cinema).
      Cultura Científica: Ética, Epistemologia & Metodologia; Pensamento Matemático (Lógica, Estatística, Informática); Histórias das Ciências e das Técnicas; Iniciação Científica.
Além desses componentes, faz parte da Formação Geral, também de modo “optatório” (obrigatório, mas com escolhas internas garantidas e incentivadas), o cumprimento de Atividades Interdisciplinares em Comunidade (AIC), organizadas por tema/problema, com alunos de diferentes origens e opções de titulação no BI.
A Formação Específica (FE) compreenderá componentes curriculares totalmente optativos e oferecidos para todas as opções de BI somente aos alunos da área de conhecimento correspondente que concluíram a FG, sem distinção de nível, integrando graduação e pós-graduação. Prevê-se um esquema de tutoria, visando orientar as escolhas de blocos curriculares de acordo com as aptidões, vocações e competências dos estudantes. Buscando contribuir para escolhas maduras de carreira profissional, nessa etapa poderão ser oferecidos módulos de introdução aos cursos profissionais, a exemplo da “Introdução às Engenharias” e da “Introdução à Psicologia”, ambas já existentes respectivamente na Escola Politécnica e na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFBA. Como a prioridade de matrícula nos cursos FE será dada por desempenho do aluno nos blocos FG e, posteriormente, na própria Formação Específica, haverá um permanente estímulo ao bom desempenho para aqueles alunos que pretendem usar o BI como via de entrada à formação profissional.
A estrutura curricular dos Bacharelados Interdisciplinares é apresentada graficamente na Figura 5.
Uma vez concluído o BI, o egresso receberá um diploma de bacharel em área geral de conhecimento que lhe dará maior flexibilidade no acesso ao mundo do trabalho.No momento, consideramos três hipóteses para o sistema de títulos do Bacharelado Interdisciplinar (BI).
Em primeiro lugar, temos o BI com entrada e saída (titulação) em quatro grandes áreas de saberes e práticas: Humanidades, Artes, Tecnologias, Ciências. Uma variante desta opção compreende a subdivisão do BI em Ciências: Ciências da Matéria, Ciências da Vida, Ciências da Saúde, Ciências da Sociedade.
Em segundo lugar, podemos considerar duas opções de entrada (seleção) e de saída (titulação): Artes & Humanidades; Ciências & Tecnologias.
Finalmente, haverá a possibilidade de uma entrada única e geral para o Bacharelado Interdisciplinar, com titulação em duas opções (Artes & Humanidades; Ciências & Tecnologias) a depender dos componentes curriculares efetivamente cumpridos.
Em todas essas opções, há a possibilidade de se definir áreas de concentração, a serem estabelecidas pelas respectivas comunidades de docentes, pesquisadores e criadores, recuperando e redefinindo o conceito de ênfase (equivalente ao Major do MNA), como por exemplo: Artes Visuais, Artes da Performance, Música, Filosofia, Educação, Letras, Comunicação, Ciências da Energia, Ciências da Matéria, Ciências da Vida, Ciências da Terra, Ciências da Saúde, Ciências Humanas, Ciências Sociais Aplicadas, Tecnologias Ambientais, Tecnologias Construtivas, Tecnologias Industriais, Tecnologias de Informação, Tecnologias de Gestão etc. Notem que essas denominações são descritivas de áreas de saberes, práticas e artes, sendo portanto campos de formação, de nenhum modo definindo profissões, ocupações ou empregos. Normativamente, não farão parte do título acadêmico e só constarão do suplemento do diploma, junto com a súmula da trajetória curricular do Bacharel.
Os Bacharelados Interdisciplinares enfim representam uma alternativa avançada de estudos superiores que permitirão reunir numa única modalidade de curso de graduação um conjunto de características que vêm sendo requeridas pelo mundo do trabalho e pela sociedade contemporânea, com os seguintes efeitos positivos esperados:
¾      alargamento da base dos estudos superiores, permitindo uma ampliação de conhecimentos e competências cognitivas;
¾      flexibilização curricular com aumento de componentes optativos, proporcionando aos estudantes a escolha de seus próprios percursos de aprendizagem;
¾      introdução de dispositivos curriculares que promovam a integração entre conteúdos disciplinares e níveis de formação;
¾      adiamento de escolhas profissionais precoces que têm como conseqüência prejuízos individuais e institucionais;
¾      redução das altas taxas de evasão, em especial do ensino público superior.
Caso desejem, os alunos graduados pelo BI poderão ter as seguintes opções de prosseguimento de estudos:
a)    Aluna(o)s vocacionada(o)s para a docência poderão prestar seleção para licenciaturas específicas (p.ex. do BI em Ciências da Matéria para Licenciatura em Matemática, Física ou Química), com mais 1 a 2 anos de formação profissional, que a(o) habilita a lecionar nos níveis básicos de educação;
b)    Aluna(o)s vocacionada(o)s para carreiras específicas poderão prestar seleção para cursos profissionais (p.ex. Arquitetura, Enfermagem, Direito, Medicina, Engenharia etc.), com mais 2 a 5 anos de formação, levando todos os créditos dos cursos do BI;
c)    Aluna(o)s com excepcional talento e desempenho, se aprovada(o)s em processos seletivos específicos, poderão ingressar em programas de pós-graduação, como o mestrado profissionalizante ou o mestrado acadêmico, podendo prosseguir para o Doutorado, caso pretendam tornar-se professor(a) ou pesquisador(a).

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Atualmente, o sistema de acesso à universidade compreende um teste único, geral e padronizado, chamado Vestibular, para seleção de sujeitos para todas as áreas de formação que tem a universidade, com diferentes graus de competitividade. É óbvia (quase escandalosa) a inconsistência lógica de se empregar o mesmo exame-padrão, um inventário unificado de testes e perguntas, para a identificação de aptidões e competências relativas a vocações tão distintas quanto o artista e o médico, o engenheiro e o advogado, o administrador e a dançarino.
O fim do vestibular não é o objetivo da proposta Universidade Nova, mas não há alternativa senão romper com o paradigma do vestibular. O exame vestibular acabará ou será superado na sua forma hoje existente simplesmente porque será inútil para o perfil de aluno que estamos buscando para o BI. A questão tem sido mal interpretada, particularmente pela cobertura às vezes enviesada dessa questão na imprensa, mas creio que isso ocorre por que a universidade brasileira criou um pequeno monstro que agora soltou as amarras e está começando a ditar os rumos da educação superior. O vestibular é um exame feito para excluir candidatos porque a universidade elitista não teria vagas para todos. Essa é a única razão por que ele precisa se tornar cada vez mais “difícil”. O que seria apenas uma forma de seleção de alunos virou uma tirania, e então, não só o ensino básico ajusta-se ao vestibular, mas também as universidades acabaram tendo que a ele se moldar.
Portanto, será necessário implantar novas modalidades de processo seletivo, mas ainda não sabemos o que substituiria o vestibular tradicional. Esse tipo de seleção não é compatível com a Universidade Nova e, portanto, penso que não terá uso nem sentido em qualquer projeto de transformação radical da educação superior.Trata-se neste momento de avaliar opções de formas de ingresso e condições de acesso nas seguintes etapas: a) ingresso de candidatos ao BI; b) seleção de concluintes dos bacharelados para as carreiras profissionais.
Para entrar no Bacharelado Interdisciplinar, primeira instância de formação daUniversidade Nova, queremos uma seleção de pessoas que tenham perfil mais aberto, que desejem experimentar coisas, vivenciar uma formação capaz de ultrapassar a mera profissionalização, que tenham interesse numa inserção plena na cultura universitária. Por esse motivo, teremos de buscar ou desenvolver alguma outra forma de seleção. Podemos considerar duas hipóteses:
Hipótese 1: desenvolver um exame especial para a seleção de alunos para o primeiro ciclo da formação universitária. Tal exame ou processo seletivo terá o perfil de um instrumento capaz de identificar potencial, talento, capacidade interpretativa, competência, habilidade, muito mais do que memorização, do que informação acumulada.
Hipótese 2: atualização do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), com ajuste aos objetivos de selecionar alunos para a Universidade Nova. Essa hipótese tem sido avaliada como em princípio viável, reconhecendo-se alguns de seus defeitos atuais. O ENEM tem a vantagem de não ser um teste baseado no acúmulo de conhecimentos, mas sim na capacidade de análise, interpretação e expressão. Trabalha com a seguinte regra: todos os dados ou informações necessários para resolver qualquer questão, por regra, estão contidos no enunciado. Mas o ENEM, tal como feito atualmente, tem um problema: grau reduzido de estabilidade, mudando muito de ano a ano. A idéia é introduzir mais constância e consistência. Uma das possibilidades em aberto é fazer com que as universidades que participam do projeto componham o conselho técnico – previsto na normatização do ENEM, mas nunca implementado – responsável pela qualidade de conteúdo da seleção. Enfim, o ENEM pode preencher plenamente a finalidade de selecionar para a Universidade Nova porque o aluno que queremos não é aquele que já sabe cálculo, geografia, física, química, matemática. É bom que este candidato já saiba tudo isso se quiser fazer carreira profissional nessas áreas, mas para entrar primeiro no Bacharelado Interdisciplinar precisa ser um aluno inteligente, competente, estudioso, capaz de se expressar, que queira se formar no âmbito da cultura universitária.
Para a seleção de concluintes do BI para as carreiras profissionais, um princípio já pode ser estabelecido: retoma-se a especificidade da seleção para cada carreira profissional, tal como era antes da unificação do exame vestibular pela Reforma Universitária de 1968. Avaliamos a pertinência de permitir ao aluno do BI participar de mais de um processo seletivo simultaneamente (incluindo licenciaturas como segunda opção às carreiras profissionais). Três instrumentos de seleção podem ser usados, isoladamente ou em combinação:
a)    Coeficiente de Rendimento durante o BI, mediante sistemas coletivos de avaliação do aproveitamento dos alunos. Pode-se definir um Eixo Temático Profissional dentro do qual os candidatos demonstrarão seu desempenho;
b)    Avaliação Seriada durante o BI, compondo um escore cumulativo. Começando no fim do primeiro ano, essa avaliação pode cobrir conteúdos do Eixo Temático da FG onde se encaixa a carreira profissional procurada;
c)    Testes de conhecimento sobre conteúdos ou eixos temáticos dos cursos FE específicos para cada opção de carreira profissional.
Resta acrescentar que, idealmente, os testes de seleção para as carreiras profissionais deverão ser de preferência de âmbito nacional, permitindo maior mobilidade dos estudantes entre instituições participantes da Universidade Nova.
De todo modo, seleção para a educação superior é um tema altamente complexo. A universidade brasileira sempre foi uma instituição de formação das elites nacionais. Com o aumento da demanda por ensino superior devido aos processos de urbanização e de modernização do Brasil, acirrou-se a competição por vagas nas universidades públicas, que são as melhores por qualquer indicador de qualidade. Assim, cada vez mais se apertou o instrumento de seleção, esse duríssimo filtro chamado vestibular. O sistema de ensino pré-universidade se ajustou ao filtro, tornando-se cada vez mais dual e paradoxal: belas teorias educacionais convivendo com carência de recursos e resultados no sistema público, em contraste com enorme pobreza conceitual e filosófica no setor privado de ensino básico, não obstante seus recursos financeiros e tecnológicos e maior eficiência. Porém, cada vez mais essa eficiência tem-se tornado capacidade de passar no teste do vestibular.

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Nos debates sobre esta proposta de ruptura com o paradigma da universidade velha, às vezes me questionam se, na hora de prosseguir do BI para os demais níveis de formação, não haveria risco de transferir para o ambiente interno da universidade o processo seletivo que atualmente é feito pelo vestibular. Respondo que é justamente essa a intenção e a força da proposta.
No Brasil, até o momento, temos praticado uma grave omissão ao manter e aperfeiçoar o modelo de ingresso na universidade através do vestibular. Deixamos que processos sociais, em sua maioria espúrios e excludentes, predominem sobre o talento das pessoas; permitimos que desigualdades sufoquem a vocação dos sujeitos que buscam a formação universitária.
O projeto Universidade Nova defende claramente que as instituições universitárias assumam essa responsabilidade, realizando internamente os processos seletivos para o prosseguimento da formação acadêmica e profissional dos seus estudantes. Não há nenhuma lógica, política ou acadêmica, que justifique deixarmos que processos seletivos para ingresso na casa da cultura, das artes e do conhecimento aconteçam fora da universidade. Ao permitirmos que isso ocorra, como se dá hoje, a seleção torna-se muito mais social e política do que por mérito, habilidade, competência, aptidão. Ao trazê-la para dentro da universidade, teremos maior controle acadêmico sobre qualidade e competência, valores que fazem parte da universidade. Isso nos leva inevitavelmente ao tema das políticas de ações afirmativas como estratégia de inclusão social pela educação.
O modelo proposto é, sem dúvida, mais inclusivo do que os processos seletivos da universidade brasileira atual. Universidade Nova vai abrir oportunidades de formação cultural, profissional, científica ou artística para cidadãos, pobres ou ricos, que tiverem talento, motivação e vocação, independentemente de classe social, etnia ou gênero.
Primeiro, em todas as hipóteses consideradas, o exame para o BI será geral, com todos os candidatos prestando seleção para ingresso à educação superior, em um tronco único e não dispersos em numerosos eixos profissionais. De imediato, tal formato diminuirá a competição tradicionalmente concentrada em alguns cursos. No modelo atual, muitos candidatos, ao não entrarem em um dado curso de carreira profissional simplesmente ficam excluídos da educação superior.
Segundo, esperamos substancial redução nas taxas de evasão, um dos principais fatores de redução da eficiência do investimento público em educação, tanto custos diretos na rede federal de educação superior quanto indiretos em programas de bolsas de estudo em instituições privadas de ensino. Na Universidade Nova, as escolhas de carreira, profissional ou acadêmica, serão feitas com maior maturidade e melhor conhecimento do conteúdo das respectivas formações.
Terceiro, a nova arquitetura curricular traz enorme potencial de ampliação de vagas, tal como já acontece em todos os contextos onde a educação universitária se estrutura em ciclos ou níveis de graduação. Estudos técnicos que têm subsidiado o projeto Universidade Nova estimam que, no BI, se poderá oferecer até o equivalente ao dobro das vagas destinadas a cursos profissionais e de pós-graduação. Haverá uma proporção aluno/docente maior do que a reduzida média do sistema atual: nas universidades federais, em torno de 10 alunos para cada professorO projeto prevê também aumento de vagas nas licenciaturas, dentro de uma estrutura curricular mais aberta à captação de vocações e aptidões. Com isso, a instituição universitária poderá contribuir, de modo mais decisivo, para diminuir o déficit educacional no ensino básico no Brasil.
Além dessas, há outra razão, não menos importante: para os BIs, os candidatos serão selecionados por criatividade e talento, qualidades intelectuais e humanas melhor distribuídas socialmente e menos ligadas à influência da história socioeconômica das famílias e das pessoas. Se conseguirmos atender no sistema público a demanda reprimida por educação superior, com sistemas de seleção que não discriminem por origem social ou étnica, ótimo. Haverá, decerto não para todos os candidatos, mas para todos os que se apresentarem com motivação e vocação.
Não podemos subestimar o efeito positivo da ampliação de vagas na educação superior. De certa maneira, até a própria adesão da sociedade aos programas de ações afirmativas tem sido prejudicada pela sensação de subtração social: vagas que eram preenchidas por jovens de famílias de classe média teriam sido subtraídas para serem concedidas às pessoas mais pobres da população. É claro que isso é importante para um efeito de justiça social, mas será muito mais correto avançar no sentido da ampliação de vagas na universidade para que os alunos tenham chances sociais mais importantes do que eles têm no momento.
No longo prazo, se todos esses mecanismos de inclusão social funcionarem como esperamos, não vamos precisar de reserva de vagas na Universidade Nova. Ainda assim, defendo que devemos manter sistemas de compensação redistribuitiva de vagas (tipo cotas ou bônus para pobres, negros e índios), monitorando qualquer grau de exclusão ou discriminação, até que tenhamos verificado serem os mesmos desnecessários nos ciclos iniciais de formação.
Para a continuidade da formação nos cursos profissionalizantes, alguns diriam que não seria mais preciso a salvaguarda de programas de ações afirmativas. Uma vez no BI, aparentemente as oportunidades estariam igualadas porque todos os alunos teriam acesso garantido a recursos educacionais e apoio institucional na universidade de acordo com o seu desempenho nos mesmos padrões de ensino. Sinceramente, não creio nisso. A estrutura curricular e alguns elementos organizativos introduzem no BI um viés igualitário (no sentido de melhorar a formação de todos e não de poucos). Isto pode reduzir, mas não suprimir ou reparar, o efeito de desigualdades sociais ou étnicas de origem. A desigualdade das bases de formação educacional entre ricos e pobres neste país é grande demais para que seja superada em dois ou três anos. Mesmo tornando-se mais eficiente e inclusiva, a instituição universitária dificilmente compensará o fato de que alguns alunos, vivendo em ambientes sofisticados e estimulantes, contando com recursos e suportes adicionais (por exemplo, contratando cursinhos de reforço), podem se dar ao luxo de apenas estudar, enquanto outros continuarão lidando com problemas econômicos, vivendo precariamente, sem livros, equipamentos e recursos pessoais, sendo obrigados a trabalhar em paralelo ao curso universitário.
O que é possível fazer nesse sentido? De imediato, devemos reforçar os programas de permanência. A universidade pública brasileira avança numa concepção ampla de apoio social aos estudantes, com concessão de bolsas do setor público e do setor privado, principalmente fundações. Essas bolsas, ainda escassas, dão conta apenas de uma parte do problema. A outra parte: a universidade precisa se reestruturar para propiciar condições de aderência dos estudantes aos programas de ensino. Para isso, precisamos garantir condições de vida e disponibilizar recursos pedagógicos e financeiros para uma formação profissional plena na universidade pública. Essa formação pode ser potencializada pela figura do professor tutor,  capacitado a acompanhar e orientar a vida acadêmica dos estudantes do BI. Além disso, planejamos a organização curricular dos Bacharelados Interdisciplinares com cursos por turnos-padrão (matutino, vespertino e noturno) e maior concentração de atividades no turno noturno, propiciando otimização de instalações, equipamentos de ensino e condições de permanência. Não queremos remendar defeitos e problemas da educação superior, em suas velhas modalidades atuais, mas sim buscar a transformação total e radical dessas estruturas e modalidades.
No limite, a proposta da Universidade Nova tem como objetivo tornar a instituição universitária uma máquina de inclusão social pela educação. Também nesse aspecto, o projeto ressalta a inspiração de Anísio Teixeira, que considerava a escola pública como “a máquina que prepara as democracias”. E para isso, precisamos atuar em dois níveis. De um lado, devemos incorporar na macro-estrutura institucional e acadêmica da universidade o que atualmente, à falta de melhor termo, chamamos de ações afirmativas. O modelo do BI, modulando a formação profissional e acadêmica, é um exemplo de ação afirmativa estruturante. De outro lado, no plano micro-institucional, precisamos desconstruir práticas pedagógicas redutoras, passivas, de baixo impacto e ineficientes, ainda vigentes na educação superior, reconstruindo-as como instrumentos de mobilização e participação dos sujeitos no seu próprio processo de formação profissional, política, cultural e acadêmica.
Por tudo isso, pelo menos na UFBA, o projeto Universidade Nova significa continuidade, aprofundamento, ampliação e é uma conseqüência direta do sucesso do Programa de Ações Afirmativas.

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Naturalmente, todos esses pontos constituem sugestões, propostas e pontos preliminares, sujeitos a críticas, discussões e revisões, especialmente do ponto de vista de política institucional.
Mesmo assim, não podemos perder o foco do projeto. Não se trata de influir, reparar ou remendar defeitos e problemas da educação superior, em suas diversas modalidades atualmente vigentes. O projeto Universidade Nova busca a transformação total e radical dessas estruturas e modalidades, em variados aspectos, difíceis de detalhar neste momento e estágio de elaboração da proposta. Por exemplo: os alunos que concluírem o Bacharelado Interdisciplinar com excepcional destaque poderão ser recrutados diretamente por programas de pós-graduação. Isso vai mudar bastante o perfil do alunado de pós-graduação, a estrutura dos cursos e sua relação com a pesquisa.
Aliás, a formação do pesquisador na Universidade Nova ganhará mais autonomia porque poderá se dar em paralelo à formação do profissional. Em muitas áreas, não faz sentido se requerer primeiro uma formação em profissões como pré-requisito para a formação do docente e do pesquisador. Tomemos Bioquímica como exemplo: o aspirante a pesquisador nesse importante campo não precisará ter-se diplomado como farmacêutico ou médico para poder entrar no mestrado e depois no doutorado da área. Outro efeito possível: se o desenho proposto alcançar plena implantação, a definição do Mestrado Profissional como formação profissional especializada complementar, em bases compatíveis com modelos internacionalmente vigentes, permitirá superar uma enorme distorção no sistema brasileiro de educação superior que é o grande business das especializações, mais um fruto da criatividade nacional.
Sobre as alterações de estrutura e função da pós-graduação no modelo daUniversidade Nova, há muitas questões, inclusive técnicas e legais, ainda em aberto: Será viável ampliar o escopo da modalidade Mestrado Profissional, como formação avançada e/ou especializada para as carreiras profissionais? Poderá a Residência, formação avançada para a área médica, ganhar equivalência ao Mestrado Profissional? Caberá, em áreas específicas que envolvem treinamento avançado em serviço, conceber a modalidade Doutorado Profissional?
Contudo, creio que a proposta realmente permitirá maior integração com a pós-graduação. Corrigiremos alguns defeitos do modelo atual, herdado da reforma de 1968, quando mantivemos, na graduação, a Europa do século 19 e na pós-graduação uma imitação do que era feito nos Estados Unidos. O grau de desarticulação entre os níveis de formação é intenso e profundo. É praticamente impossível a um aluno de graduação cursar disciplinas na pós-graduação, mesmo que mostre desempenho para tanto. Ao mesmo tempo, nenhum estudante da pós-graduação aceita ter cursos num nível de graduação, considerando isso como mero nivelamento. A estrutura universitária precisa ser plenamente integrada como o é em outros países do mundo. Trago essa experiência da minha pós-graduação em universidades estrangeiras, quando convivi na mesma sala com alunos de graduação, mestrado, doutorado e, em alguns casos, até colegas cumprindo estágio pós-doutoral ou matriculados em cursos de extensão.
Resta considerar o tema das reações e resistências à nova proposta. O primeiro foco de resistência, certamente, é a indústria do vestibular, um setor privado muito poderoso que opera sobre a lógica da competitividade. A Universidade Nova, ao ampliar a oferta, reduz a competição. Certamente, os alunos de escola privada continuarão tendo acesso à universidade, mas também os de escola pública. Outro segmento que, aparentemente, pode mostrar resistência são os próprios docentes das instituições, grupos que têm quatro gerações de intelectuais formados nessa realidade atual e que não conhecem outra realidade.
Além disso, temos que considerar o setor privado de ensino superior. AUniversidade Nova representará imenso avanço em termos de matrículas no ensino público. Há uma expectativa de duplicar a oferta de vagas caso todo o sistema federal adote essa proposta. É um salto histórico porque a cada ano a representatividade do setor público na oferta de matrículas vinha caindo. Mas pessoalmente não acho que devamos pensar em termos de oposição e sim em termos de construção coletiva. O conceito de oposição se aplica quando algo concreto e definido se busca impor de cima para baixo, como foi a Reforma Universitária do regime militar, em 1968. Nesse caso, vai ser o oposto. Por isso sou otimista. Sei que vamos construir em conjunto uma proposta avançada e progressista e, para isso, tenho a certeza de contar com docentes, servidores, estudantes e toda a sociedade.
À primeira vista, os elementos de eficientização do processo de formação universitária podem ser determinantes para sua adoção em escala ampla pelo sistema federal de educação superior. Afinal de contas, como se trata de recursos públicos, justifica-se plenamente a busca obstinada de economicidade na gestão institucional. Entretanto, a implantação da arquitetura proposta para aUniversidade Nova terá seu maior impacto não em termos financeiros e administrativos, mas justamente nos aspectos filosóficos e conceituais das funções culturais e sociais da Universidade. Para subsidiar este argumento, proponho retomar a idéia-base deste livro de que a Universidade deve ser a casa do talento e da criatividade, o lugar da competência radical (ver Textos 3 e 6, acima).
O que acontece quando, submissos e enredados nas tramas da sociedade competitiva e do pensamento conservador, deixamos sobreviver a universidade da mediocridade e do conformismo? Quantas inteligências sensíveis têm sido rejeitadas, fagocitadas ou desviadas de promissoras carreiras científicas ou artísticas por esta velha universidade? Cada pessoa, rica, negra, índia, de baixa renda, branca, imigrante, oriental, ou não, tem algum diferencial de talento e capacidade criativa que cabe à sociedade, por meio dessa “maravilhosa invenção chamada universidade”, como escreveu Kant, descobrir e cultivar, para o desenvolvimento econômico, social e cultural da própria sociedade.
A estrutura curricular da Universidade Nova permitirá a captação de estudantes vocacionados para certas áreas de formação (como por exemplo, as artes e as ciências com forte componente lógico) por meio de iniciativas de esclarecimento, sedução e recrutamento. Docentes, pesquisadores e “atuantes” (no sentido latouriano) de cada área de conhecimento e setor de inserção profissional terão maiores chances de lançar suas redes, ainda no momento interdisciplinar do BI, para pescar os latentes talentos desconhecidos. Assim, sinais de “competência radical” poderão ser revelados a tempo de direcionar de modo adequado as carreiras profissionais, científicas e artísticas dos estudantes universitários.
Ademais, se o adjetivo interdisciplinar for mesmo levado a sério, teremos modificado sobremaneira o perfil intelectual dos egressos da educação universitária. Ao final dos BIs, os alunos deverão ter cursado pelo menos dois terços de disciplinas não relacionadas às carreiras profissionais oferecidas. Assim, na Universidade Nova formaremos mais engenheiros expostos à poesia, mais médicos com uma compreensão ecológica, mais artistas com uma passagem pela filosofia, mais administradores com formação histórica, mais químicos com estudos clássicos.
Cabe aqui um esclarecimento, dado que as primeiras reações frente à divulgação de pontos parciais dessa proposta têm se manifestado frontalmente contra uma rendição à ALCA-demia ou possível adesão ao Espaço Universitário Comum Europeu. Tais reações revelam reduzido grau de conhecimento da proposta, pois, como fica claro neste livro, somos contra a ALCA-demia (ver Texto 29) e temos uma consciência crítica perante o Processo de Bolonha (ver Textos 26 e 27). O desconhecimento desses proto-críticos é compreensível dado o fato de que nos encontramos nas etapas iniciais de construção e detalhamento dos seus aspectos conceituais e metodológicos.
Na realidade, há grandes diferenças ideológicas, formais e operacionais entre o BI da Universidade Nova, o college no modelo norte-americano e o Bachelor do modelo unificado europeu. Por um lado, a pré-graduação da universidade norte-americana é mais longa e mais densa, em termos curriculares, do que o BI, exigindo dedicação exclusiva e, em muitos casos, residência nos campi. Por outro lado, as diversas versões do primeiro ciclo do Processo de Bolonha (laurea trienale na Itália, licensena França, bachelor na Inglaterra, bakkalaureat na Áustria etc.) têm estruturas de currículo já bastante especializadas, quase contraditórias com a essência interdisciplinar do BI. Apesar de, por diversas razões (duração equivalente, caráter predominantemente público da educação superior, manutenção de cursos profissionais no segundo ciclo etc.), encontrarmos semelhanças entre o modelo europeu atual e a proposta da Universidade Nova, as diferenças de contexto entre os espaços universitários europeu e latino-americano são grandes o bastante para desaconselhar uma adesão formal ao Processo de Bolonha.
Em suma, ampla compatibilidade é positiva neste mundo globalizado, mas qualquer submissão será fatal (como tem sido em todos estes anos de história da educação superior brasileira) para o cumprimento do mandato humboldtiano da universidade como lugar de concepção e construção da identidade nacional. Como fica claro pela leitura dos textos da última seção, portanto, nada mais longe das bases filosóficas e políticas da Universidade Nova do que supor que se trataria de uma proposta de incorporação a qualquer um dos modelos hegemônicos de universidade no cenário internacional.
Isso nos leva à principal inspiração da proposta Universidade Nova, desde os seus primeiros ensaios. Não é Harvard, nem Bolonha. Trata-se de uma das mais fecundas fontes do pensamento progressista sobre a educação na história brasileira: ninguém menos que Anísio Teixeira.

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Anísio Teixeira, eminente educador baiano, no decorrer de uma vida de gestor público profícuo e intelectual criativo, produziu uma obra de inegável consistência filosófica, política e científica. A partir de perspectivas que designa como “Educação Democrática” e “Educação Progressiva”, Anísio Teixeira formula conceitos fundamentais sobre as bases políticas da Educação como direito de todos e dever do Estado (nas suas palavras: “dever democrático, dever constitucional, dever imprescritível”). Desenvolvendo um ponto de vista próprio de pedagogia filosófica, criticando duramente o que chama de “dualismo escolar”, Anísio valoriza e aprofunda o papel das abordagens dialógica e participativa no processo educacional e sistematiza a proposta de uma Escola Nova. Nisso, antecipa em décadas posições posteriormente encontradas em Paulo Freire e seus discípulos.
Sintonizado com os debates epistemológicos mais avançados do seu tempo, Anísio antecipa a emergência de novos paradigmas no panorama da ciência contemporânea, formula sua concepção da “nova escola pública”. A esse respeito, no livro hoje clássico Educação não é privilégio, Teixeira (1957) escreve:
em face dessa profunda alteração da natureza do conhecimento e do saber (que deixou de ser atividade de alguns para, em suas aplicações, se fazer necessidade de todos), a escola não mais poderia ser a instituição segregada e especializada de preparo de intelectuais ou “escolásticos” e deveria transformar-se na agência de educação dos trabalhadores comuns, dos trabalhadores qualificados, dos trabalhadores especializados, em técnicos de toda ordem, e dos trabalhadores da ciência nos seus aspectos de pesquisa, teoria e tecnologia.
Além de criador de uma importante obra reflexiva e propositiva sobre a Universidade, Anísio Teixeira liderou várias iniciativas concretas, como a construção institucional da UDF e da UnB, frustradas pela repressão política, como vimos acima (Texto 20). Nesse aspecto, no Projeto de Lei que instituiu a Universidade de Brasília, enviado ao Congresso Nacional em 21 de abril de 1960, tendo Anísio Teixeira como Presidente da Comissão de Elaboração, encontramos elementos de definição conceitual plenamente convergentes com a proposta Universidade Nova. Isso transparece no seguinte excerto do item 12 da Exposição de Motivos:
Propõe-se uma estrutura nova da formação universitária, para dar-lhe unidade orgânica e eficiência maior. O aluno que vem do curso médio não ingressará diretamente nos cursos superiores profissionais. Prosseguirá sua preparação científica e cultural em Institutos de pesquisa e de ensino, dedicados às ciências fundamentais. Nesses órgãos universitários, que não pertencem a nenhuma Faculdade, mas servem a todas elas, o aluno buscará, mediante opção, conhecimentos básicos indispensáveis ao curso profissional que tiver em vista prosseguir. (grifos nossos)
Vários escritos de Anísio sobre a universidade – destaco o livro Ensino Superior no Brasil. Análise e interpretação de sua evolução até 1969 –, compõem uma crítica, confessadamente precoce, da Reforma Universitária de 1968. Nesse volume, publicado postumamente em 1989, Anísio faz uma aguda análise da história e da estrutura do sistema brasileiro de educação superior, acrescentando uma valiosa seção propositiva, que será objeto de nossa atenção adiante. Premonitório na identificação dos principais problemas estruturais da universidade brasileira – os dilemas cruciais da identidade institucional (formar quadros técnicos ou promover ciência & cultura? educar ou credenciar profissionais?) e o processo de expansão desenfreada, que se tornou ainda mais sério com a privatização dos anos 1990 –, o seguinte trecho (Teixeira, 2005, p. 178-9), merece transcrição:
Vacilando entre a idéia de ensino superior como formação profissional das primeiras escolas do Império e a da universidade como consolidadora da cultura nacional, manifesta na década de 1930 e depois na Universidade de Brasília em 1960, o País viveu todo esse longo período de mais de cem anos a multiplicar vegetativamente aquelas primeiras escolas profissionais, dentro das precárias condições em que se criara o primeiro curso médico em 1808, entremeando esse laissez-faire com os assomos ocasionais de criação da verdadeira universidade. [...] Durante esse longo período enraíza-se a idéia de um ensino superior superficial, simples reflexo de cultura estrangeira importada, de ensino oral e de tempo parcial, destinado a oferecer diplomas suscetíveis de credenciar seus titulares a cargos e honrarias. O longo hábito de tais escolas deflagra, sob as novas condições do Brasil moderno, uma expansão explosiva de tais escolas por todo o País. (grifo no original)
Em diferentes momentos da sua obra, Anísio Teixeira sintetiza elementos de definição conceitual importantes para sua proposta de Universidade, por analogia à concepção, a um só tempo revolucionária e pragmática, da Escola Nova. Conceitos fundamentais e elementos estruturais previstos na proposta da Universidade Nova já se encontram expostos com clareza na obra anisiana tardia, escrita após a catastrófica repressão militar à UnB original (SALMERON, 1998). Senão vejamos: os componentes curriculares gerais e específicos, incluindo o conceito de cursos-tronco, e o caráter majoritariamente optativo do BI (TEIXEIRA, 2005, p. 302); a articulação entre os bacharelados curtos, as carreiras profissionais de média duração e as carreiras longas, incluindo a natureza interdisciplinar (naturalmente sem utilizar a terminologia atual, que seria criada posteriormente) dos ciclos iniciais de formação (TEIXEIRA, 1998, p. 144-160); a estrutura modular, não-especializada e, citando Abraham Flexner (1866-1959), a organização por níveis de formação do sistema de unidades de ensino e das escolas de pós-graduação (TEIXEIRA, 2005, p. 202).
Examinemos alguns desses pontos em maior detalhe. Na “universidade reformada” de Anísio, encontra-se a proposta de “colégios universitários”, unidades de ensino do ciclo de pré-graduação, cuja estrutura curricular compõe-se de dois níveis de formação: curso básico e curso propedêutico. Por sua clareza, precisão, pertinência e convergência em relação à proposta dos Bacharelados Interdisciplinares daUniversidade Nova, vale a pena reproduzir na íntegra a seguinte citação do livroEducação e Universidade (TEIXEIRA, 1998, p. 154):
Cabe aqui, antes de prosseguir, examinar a designação de ensino básico que se vem introduzindo em nossa terminologia da reforma. Se ele significabásico apenas como preparatório para as carreiras profissionais, seria aceitável. Nesse caso, o básico seria um ensino geral, introdutório ou propedêutico ao estudo superior no nível acadêmico ou no nível profissional, ou destinado a uma ampliação da cultura secundária, para os que não desejassem fazer carreira acadêmica ou profissional. Neste caso, porém, não deveria haver a insistência que percebo em que ele seja ministrado nos institutos destinados às carreiras acadêmicas, salvo se eles se destinassemapenas às carreiras acadêmicas.
Sobre a estrutura curricular da pré-graduação, escreve Anísio (TEIXEIRA, 1998, p. 154-5):
O curso de cultura geral é diferente de um curso propedêutico e este curso propedêutico se diversifica pelo ramo de que ele deseja ser propedêutico. O de cultura geral é uma iniciação, uma introdução a um ramo do saber, com o objetivo central de alargar a mente do educando, de lhe dar novas vistas da realidade e de aparelhá-lo com certas idéias necessárias para compreender o mundo do saber, a sua diversidade, e ajudá-lo a pensar com maior riqueza de imaginação. Já o curso propedêutico pode alcançar alguns desses efeitos, mas não pode ser tão desinteressado e tem de levar em conta a aplicação do conhecimento examinado no campo para que deseja ser propedêutico. O curso geral em certos casos pode ser propedêutico ao curso de especialização acadêmica, mas somente como elemento para a escolha do campo a que se vai dedicar.
Na sua proposta de reforma, Anísio (TEIXEIRA, 1998, p. 155-6) demonstra uma clara intenção de introduzir maior eficiência e competência na função pedagógica do ciclo de pré-graduação (equivalente ao BI da nossa Universidade Nova) e destaca a finalidade vocacional desse nível de formação:
Toda essa reforma visaria atender a problemas reais da nossa conjuntura universitária, conduzindo a melhor divisão de trabalho entre as diferentes categorias do professor, no sentido de sua competência e da direção do seu espírito, e a melhor divisão também dos estudantes, oferecendo-lhes no curso básico, ou melhor, no curso inicial de dois anos (ou três) uma oportunidade para se examinar e se descobrir e fazer as suas opções, ou de deixar a universidade por não ser feito para ela, ou de achar que lhe bastam os conhecimentos adquiridos, ou de escolher uma das carreiras acadêmicas ou uma das carreiras profissionais.
A reforma universitária proposta por Anísio também já previa que cursos de formação geral tipo Bacharelados Interdisciplinares abririam uma possibilidade de acesso universal à educação universitária. Além disso, indicava, sem hesitação, que as trajetórias de seleção para carreiras profissionais ou acadêmicas se dariam como opções em um mesmo ciclo de formação com a “introdução da formação acadêmica ao lado e independente da profissional”. O seguinte trecho sintetiza soberbamente tais pontos de sintonia entre a Universidade Nova e a utopia anisiana de universidade (TEIXEIRA, 1998, pg. 156):
A reforma resolveria, assim, o problema da admissão à universidade, abrindo os seus portões para acolher a mocidade, que terminara o curso secundário e alimentava o propósito de continuar os estudos, para um curso introdutório, de nível superior, destinado a alargar-lhes a cultura geral recebida no nível secundário, dar-lhes uma cultura propedêutica para as carreiras acadêmicas ou profissionais ou para treiná-los em carreiras curtas de tipo técnico. Terminados esses cursos é que iria ele ser selecionado para os cursos regulares de graduação nas carreiras acadêmicas ou profissionais. Depois desta formação, nova seleção far-se-ia de imediato ou posteriormente, para a escola pós-graduada.
Enfim, há inegáveis convergências ideológicas, formais e operacionais entre a proposta de Anísio Teixeira (com o sistema de colégios universitários com cursos universitários propedêuticos) e a arquitetura curricular do projeto Universidade Nova (com o Bacharelado Interdisciplinar). Não obstante, na condição de neófito estudioso do pensamento anisiano, o que para mim pareceu mais impressionante foi constatar que se encontra em detalhes, na sua obra, o sistema de três ciclos de formação (graduação, profissionalização e pós-graduação), antecipando em quase meio século a arquitetura curricular do Processo de Bolonha.

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Dizem alguns críticos da Universidade Nova que a sociedade brasileira mal está se recuperando das ações afirmativas nas universidades públicas e já tem que começar a pensar em algo novo. É função da universidade justamente fazer isso. O que enfim se espera da universidade? Sabemos que ela foi inventada para estar à frente da sociedade, para construir a cultura, para ser vanguarda na história. Quando o projeto Universidade Nova estiver em curso de implantação, possivelmente vamos ter que abrir alguma outra vanguarda. O fato de a universidade brasileira, historicamente, ter abdicado de construir o novo, fez com que a sociedade fosse buscar a inovação em outras instituições. Justamente por isso, a instituição universitária foi paulatinamente perdendo seu valor perante a cultura nacional.
Outros críticos se mostram céticos frente a qualquer possibilidade de mudanças na universidade sem antes termos resolvido o imenso débito histórico e político do ensino médio e fundamental. Argumentam que não faz sentido falar de reforma na universidade enquanto continuarmos com uma educação básica incapaz de efetivamente preparar seus alunos para prosseguir em sua formação intelectual.  Pontificam, sisudos e solenes: precisamos renovar a escola pública em todos os níveis, depois vamos reformar a universidade. Penso, a partir de uma lógica oposta, que se trata de uma posição imobilista e paralisante. Não podemos esperar mais.
Uma reforma universitária verdadeira, justificada e focada na arquitetura curricular, poderá contribuir para (e, quem sabe, catalisar) a desejada transformação de todo o sistema educacional. No momento em que o sistema federal de educação superior mudar sua arquitetura curricular, redefinindo o conceito de formação universitária e, por conseqüência, a sistemática de recrutamento de novos estudantes, estou certo de que haverá um efeito reverso no ensino médio e quiçá também no ensino fundamental. Como e quando isso ocorrerá, é difícil prever e mesmo conceber. Mas não tenho dúvidas de que mudanças profundas na educação básica advirão do projeto Universidade Nova.
Faz parte dos pensamentos esperançosos que, neste livro, pretendi compartilhar com os eventuais leitores, a reflexão de que agora estamos mobilizando mais o debate sobre esses temas relevantes e assim ganhamos visibilidade e auto-afirmação. Por exemplo, colocar o Brasil no cenário educacional do mundo é responsabilidade da universidade. Para isso, é imprescindível que, nas relações complexas de trocas internacionais, tenhamos sistemas educacionais que sejam valorizados e compatíveis com os centros intelectuais e econômicos do mundo contemporâneo. Não podemos criar e fomentar, sob o pretexto da autonomia institucional e da soberania nacional, formas de perpetuação do nosso atraso. É claro que a universidade brasileira conta com centros de pesquisa de excelência e reconhecimento internacional, mas o avanço pontual não faz a instituição como um todo ser vanguarda. A universidade precisa de algo que a unifique nessa direção. E aí entra o projeto Universidade Nova.
Talvez por mera dialética, parece que as condições de superação do constrangimento histórico de termos uma universidade arcaica e inerte se acumulam, indicando algum horizonte de transformação.
Primeiro, as mudanças pretendidas pela Reforma Universitária de 1968 foram completamente digeridas e neutralizadas pelas forças do tradicionalismo na universidade. De fato, em menos de 10 anos, as universidades brasileiras que passaram por aquela reforma já haviam recuado, quase completamente, em relação às alterações de estrutura institucional e de arquitetura curricular.
Segundo, nem mesmo o deus ex-machina chamado “mercado de trabalho” parece mais se importar com os padrões de formação profissional dos egressos da educação universitária. Grandes corporações, empresas de pequeno e médio porte, instituições públicas (principalmente do judiciário), simplesmente retreinam todos os profissionais recrutados para compor seus quadros técnicos e executivos, como se a passagem pela instituição educacional e a conquista do diploma universitário apenas cumprissem a função de credenciamento e não de formação profissional.
Por último, os modelos de formação universitária que inspiraram nossas instituições de educação superior já se encontram totalmente superados em seus contextos originais. Quando o prazo de consolidação do Processo de Bolonha for alcançado (a data é 2010), o Brasil corre sério risco de ser o último país com algum grau de desenvolvimento científico, tecnológico e industrial a possuir uma arquitetura curricular com padrões e modelos estabelecidos na Belle Époque. Caso isso ocorra, o País do Futuro terá enfim cumprido sua sina de ser para sempre o “país dos bacharéis”.
Anísio Teixeira tinha clareza das estratégias necessárias para realizar a reforma universitária verdadeira, em um espírito plenamente concordante com as iniciativas do atual movimento pela Universidade NovaNovamente, a palavra presciente do mestre Anísio (2005, p. 178-9) nos guia, como se fosse hoje:
O desafio do presente é criar ordem e padrões de métodos e ação universitários na galáxia imprecisa, múltipla e vaga do ensino superior brasileiro, em expansão incoercível.


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O termo utopia foi inventado por Sir Thomas Morus, em 1516, para nomear a república ideal, um país que não existe e não pode existir, um lugar impossível. Vem de u-topos que, literalmente, significa não-lugar. Jorge Luis Borges, num conto triste intitulado Utopía de un hombre que está cansado, toma Quevedo como epígrafe: “Llamola utopía, voz griega cuyo significado es no hay tal lugar.” O termo utopia popularizou-se em todas as línguas modernas como sinônimo de projeto irrealizável. Num momento recente, tornou-se popular a declaração de que vale a pena lutar por utopias. Sinceramente, discordo. Acho o utopismo patético emelancólico. Para mim, a luta que vale a pena é por lugares possíveis.
Universidade Nova nada tem de fantasiosa; este projeto não é uma utopia. Trazemos sim uma proposta provocadora, realista, viável, portanto realizável; seguimos um movimento assumidamente desejante, mobilizador, histórico (no sentido de operado pela ação humana). Por tudo isso, proponho chamá-la deprotopia. Ao neologismo se aplica a mesma lógica etimológica do termo utopia. Mas atenção: no lugar da negação, do vazio, temos o prefixo pro, a favor de, na direção de, atuante (como em "pro-ativo"). Criamos, aqui, um movimento a favor de um lugar; movemo-nos em direção a este lugar; neste movimento, construímos o novo lugar, nossa protopia, a Universidade Nova.