domingo, 31 de janeiro de 2016

Sr. Turner, a luz de uma certa paisagem romântica


Espírito inquieto, apreciador do silêncio da sua própria companhia e homem de vida atribulada,  o inglês Joseph Mallord William Turner é definido por muitos historiadores como o 'primeiro pintor de vanguarda'. Um pouco da sua vida e obra, agora, chega à grande tela com o filme 'Sr. Turner'. Claro, como é próprio das adaptações, o filme tem diversos aspectos que em nada dizem respeito à história real. Mas faz parte. Turner tinha um verdadeiro fascínio pela luz e seus efeitos, tendo estudos sobre a variação das cores, e assim o seu trabalho foi considerado ponto de referência da paisagem romântica. De outra parte, de realce, o filme expõe o incômodo que foi o advento da fotografia para a pintura (imagine hoje!) - temos, desse modo, a porta aberta para a análise da questão sob a perspectiva de Walter Benjamin, com a 'Obra de Arte na Era da Reprodutividade Técnica'. Pela versão cinematográfica, no leito de morte, Turner, ao lado do médico, diz: 'então tornar-me-ei nada'. No momento final, falecendo, afirma que a 'entidade divina é o sol'. O filme está indicado ao Oscar de melhor fotografia. Não é de se levar muito a sério o cinema de Hollywood - se  'Sr. Turner' não ganhar a estatueta, ter-se-á mais um fato a depor contra a sua credibilidade. Aí abaixo, o trailer. 






sábado, 30 de janeiro de 2016

Comte-Sponville, o desespero alegre e a questão da felicidade

Aí abaixo, reproduzo alguns extratos de uma entrevista com o filósofo André Compte-Sponville, herdeiro do legado da conhecida École da rue d'Ulm. Acompanho o seu trabalho há anos, e quando as pessoas me fazem perguntas sobre felicidade, alegria, verdade, tristeza, etc., geralmente, lembro da sua obra. Gratidão e coragem, como virtudes, também são temas por ele tratados - o que, de pronto, coloca a 'questão do ter caráter'. Felicidade: 'Todo lapso de tempo durante o qual a satisfação parece imediatamente possível'. Mais ainda: 'A sabedoria é a felicidade dentro da verdade - é [esta] o máximo de felicidade associado ao máximo de lucidez'. São enunciados que demandam mais explicação. Por isso, à guisa de considerações preliminares, vale a pena a leitura da entrevista. 


André Comte-Sponville : capa do seu livro 'Pequeno
 Tratado das Grandes Virtudes' 


O senhor afirma que todos os homens sem exceção procuram ser felizes e cita Pascal, em seus Pensamentos (1670): "A busca da felicidade é o motivo de todas as ações de todos os homens, inclusive dos que vão se enforcar". Para a maior parte da humanidade, essa busca não seria vã?
André Comte-Sponville - Tudo depende do que se entende por felicidade. Se você busca uma alegria contínua e soberana, ou mesmo a ausência total de sofrimento e angústia, certamente nunca será feliz. "Toda vida é sofrimento", dizia Buda. E tinha razão. A felicidade, se a entendemos como uma alegria completa, é apenas um sonho, que nos separa do contentamento verdadeiro. Em busca da felicidade absoluta, nós nos proibimos de viver as felicidades relativas e nos tornamos infelizes. Se, ao contrário, você entender como felicidade o fato de não ser infeliz ou simplesmente de poder desfrutar algumas alegrias, a felicidade não é impossível. E você será feliz somente por não ser triste. À exceção, claro, nos momentos mais difíceis da vida.

Qual é sua definição de felicidade na vida cotidiana? 
Comte-Sponville - Todo lapso de tempo durante o qual a satisfação parece imediatamente possível. Não há como se sentir alegre permanentemente. Isso é impossível. Mas há como sentir que podemos ser felizes por nós mesmos, sem que nada de essencial mude no mundo. A infelicidade se instala quando nossas alegrias dependem totalmente de circunstâncias externas.

O senhor associa a felicidade à sabedoria. Os ingênuos e os ignorantes seriam então condenados a ser infelizes? 
Comte-Sponville - Existem imbecis felizes e gênios infelizes. Mas a sabedoria é algo distinto da genialidade. Tampouco tem a ver com desatino ou tolice. A sabedoria é, sim, um certo tipo de felicidade. Mas nada tem a ver com a felicidade ilusória, conseguida por drogas ou pela ignorância. A sabedoria é a felicidade dentro da verdade. É o máximo de felicidade associado ao máximo de lucidez. Essa é a meta da filosofia. Nesse caminho, há muitas ilusões a perder e algumas verdades desagradáveis a confrontar. É por isso que a filosofia passa inevitavelmente pela angústia, pela dúvida, pela desilusão. Continua sendo apenas um caminho. Porque o destino é uma felicidade autêntica. É isso que chamamos de sabedoria.

E a infelicidade, como ela se revela na vida real?
Comte-Sponville - Quando toda alegria parece impossível, quando acordamos pela manhã sem outra perspectiva a não ser a angústia, a tristeza ou o sofrimento... Eu vivi isso. Perdi duas das pessoas que mais amava no mundo: minha única filha na época e, em seguida, minha mãe. No início, só há o horror e as lágrimas. Com o tempo, a paz retorna, em seguida a alegria. E por isso digo, por oposição, que a felicidade também existe. Como é bom deixar de se sentir infeliz!

Como a filosofia pode ajudar alguém a viver feliz? 
Comte-Sponville - Filosofar é pensar sua vida e viver seu pensamento. Em que medida isso pode nos aproximar da felicidade? Ficando mais perto da verdade, nós nos libertamos de várias ilusões e esperanças tolas. Isso nos ajuda a amar a vida mais do que amar a felicidade, a verdade mais do que a fantasia, o amor mais do que a fé ou a esperança. Os maiores mestres são, a meu ver, Epicuro (de Samos, filósofo grego dos séculos IV e III a.C.), (Michel) Montaigne (filósofo francês do século XVI) e (Baruch) Spinoza (filósofo holandês do século XVII). Quanto a mim, já me expliquei longamente em meu Tratado do Desespero e da Beatitude e, de maneira mais resumida, em Felicidade, Desesperadamente.

A religião pode dar ilusão de felicidade? A fé seria um antídoto à tristeza?
Comte-Sponville - Isso depende de quem tem fé. Se você acredita que a felicidade eterna o aguarda após a morte, isso pode ajudar a suportar em vida a infelicidade... Como sou ateu, vejo nisso mais uma armadilha que uma tentação. Não vou esperar morrer para ser feliz. O fato de, para mim, nada existir após a morte é um motivo a mais para viver da melhor maneira possível. É o que chamo de desespero alegre. Existe uma vida antes da morte, e é a única que (me) importa.

A "felicidade que nasce da verdade" foi recomendada por Santo Agostinho (filósofo e teólogo que viveu nos séculos IV e V) como o caminho para a beatitude. Para um ateu como o senhor, o conceito de beatitude tem outro significado?
Comte-Sponville - Não. A definição me convém perfeitamente. Mas não é um caminho para a beatitude. É a própria beatitude. Ela é a felicidade dentro da verdade e, portanto, também dentro da eternidade. Toda verdade é eterna. Mas não é uma eternidade após a morte. É a eternidade presente ou o presente eterno. Spinoza, nesse aspecto, é mais esclarecedor que Santo Agostinho.

O senhor se tornou ateu aos 18 anos, após uma confessada desilusão com Deus. Disse, na época: "Uma das raras certezas que eu tenho é que Deus jamais me disse algo". Poderia nos contar como se passou sua conversão ao ateísmo? 
Comte-Sponville - Foi em 1970. Por que perdi a fé? Sem dúvida, por duas razões principais: a política e a filosofia. A paixão política, naquela época, era tudo. Comparando com a política, a religião me despertava bem menos interesse. Deus deixou de me atrair. Em seguida, parei de crer. Simultaneamente, descobri a filosofia, nos meus estudos, e os argumentos em favor do ateísmo me pareciam definitivamente mais fortes que os argumentos pró-religião. Continuo a refletir sobre o tema. Eu me explico melhor em meu livro mais recente, que acaba de ser editado na França: O Espírito do Ateísmo (Introdução a uma Espiritualidade sem Deus).

Os céticos não seriam mais suscetíveis à depressão ou ao tédio? 
Comte-Sponville - Freud é, sem dúvida, quem melhor respondeu a essa questão. A depressão ou a melancolia, escreveu ele, "é a perda da capacidade de amar". Não é a fé que falta aos deprimidos, é o amor.

O senhor diz que, para o filósofo, uma tristeza autêntica vale mais que uma felicidade mentirosa. Não seria perigoso consagrar o coração à melancolia?
Comte-Sponville - O filósofo prefere a alegria à tristeza, como todo mundo. Mas ele coloca a verdade num patamar mais alto que todo o resto. Isso não quer dizer que seu objetivo seja a infelicidade. É preciso sempre ter coragem para enfrentar a melancolia ou a tristeza quando surgem. É o único caminho.

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Fonte: http://revistaepoca.globo.com/



sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

Ventos do porvir: a hora termina o dia, mas é o autor quem termina a obra



Por Leont Etiel

À espreita dos ventos por vir, o lugar sempre esteve ali, desde que o mundo é mundo. Se a pressa tende a fazer ver a vida apenas como um amontoado de tragédias, em Cruz da Serra o devagar soprado na brisa dos dias é impulso para a arte de pensar que, mais do que o trágico, enxerga nas desventuras do mundo uma sucessão de comédias. Equilíbrio de estado e tranquilidade incondicionais aos relógios. Terminat hora diem; terminat auctor opus – a hora termina o dia; [mas] o autor termina a obra.
As gentes primeiras do lugar eram gentes, por assim dizer, ‘em estado de natureza’. Levantaram-se do chão como as safras e as árvores, como os animais que percorrem os campos e os pássaros que voam por sobre eles. Levantaram-se sem resignação, com esperança, dado que, do chão, se quer o alimento e, por último, só se aceita o sepulcro.
É certo que o mundo nunca está contente, mas se não há resquícios de sentir e de desejar, é de se supor que se está em estado de perecimento, mesmo vivo continuando-se. Em Cruz da Serra, o que nunca faltou foi transpiração de sentir no deambular dos seus cenários. Paisagens, eis o que sempre teve, que de tanto existirem não findam, por muito que o resto dos seus tempos primeiros lhe falte.  Por mais que existam dias tão duros como o frio deles ou que não se tenha ar para tanto calor, a paisagem está aí. Existindo mudando. Como disse Saramago, para as terras alentejanas, há períodos no ano em que o chão é verde, outros amarelo, e depois castanho, ou escuro. E também vermelho em lugares que é cor de barro ou sangue sangrado. Mas isso depende do que no chão se plantou e cultiva, ou ainda não, ou não já, ou do que por simples natureza nasceu, sem mão de gente, e só vem a morrer porque chegou o seu último dia. Às vezes, contudo, como na existência em geral, pode-se passar por tanta paisagem, por tanta vida, de forma perdida, dispersando-se e sem entender o essencial.


Se as coisas têm que ser assim, é um assunto de alta complexidade, posto que, por essa via, abona-se um determinismo absoluto que serve de combustível para tantas e tantas seitas religiosas, as quais discursam sobre a vida e os céus através da linguagem da intolerância. O que parece certo é que o nosso mundo, com seu peso e leveza, é coberto de mares e terras, entrecortado de rios, ribeiras e regatos, a escorrer água que vai e volta sempre ela mesma, sempre água. O peso e a leveza, o eterno retorno. Passa-se a contabilidade dos calendários, vão-se as gerações. Também é desse modo em Cruz da Serra. Nas curvas do tempo, o lugar dos anos de solidão – ‘Os Cem Anos de Gabriel Garcia Marquez em qualquer lado da América Latina.
Serra, pode ser um lugar imaginário de qualquer um, onde, do alto reflexivo, na visualização de distantes paisagens, visitam-se os segredos e mistérios do próprio mundo interior, onde os acontecimentos e as lembranças (sobre)vivem para além do tempo calendarizado,  com o  ‘há muito tempo’ mantendo-se como ‘o parece que foi ontem’. A hora termina o dia, mas é o autor quem termina a obra.



quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

Substância oculta do mundo: corpo e voz no silêncio do verbo

Uma entrevista do lusitano Luis Serguilha ao saudoso Antonio Abujamra, com um realce em sua obra. Espero, este ano, realizar uma atividade com Serguilha na UFPB. 



quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

'E quando se sente parece que se está só'

'Memória cosmopolita'. De ontem para agora. O que se faz da existência individual e o deambular do tempo presente. 


Qué cantan los poetas andaluces de ahora?
Qué miran los poetas andaluces de ahora?
Qué sienten los poetas andaluces de ahora?
Cantan con voz de hombrepero, dónde los hombres?
Con ojos de hombre miranpero, dónde los hombres?
Con pecho de hombre sientenpero, dónde los hombres?
Cantan, y cuando cantan parece que están solosMiran,
y cuando miran parece que están solos 
Sienten, y cuando sienten parece que están solos
Qué cantan los poetas, poetas andaluces de ahora?
Qué miran los poetas, poetas andaluces de ahora?
Qué sienten los poetas, poetas andaluces de ahora?
Y cuando cantan, parece que están solos
Y cuando miran , parece que están solos
Y cuando sienten, parece que están solos
Y cuando cantan, parece que están solos
Y cuando miran , parece que están solos
Y cuando sienten, parece que están solos
Pero, dónde los hombres?
Es que ya Andalucía se ha quedado sin nadie?
Es que acaso en los montes andaluces no hay nadie?
Que en los campos y mares andaluces no hay nadie?
No habrá ya quien responda a la voz del poeta,
Quien mire al corazón sin muro del poeta?
Tantas cosas han muerto, que no hay más que el poeta
Cantad alto, oireis que oyen otros oidos
Mirad alto, vereis que miran otros ojos
Latid alto, sabreis que palpita otra sangre
No es más hondo el poeta en su oscuro subsuelo encerrado
Su canto asciende a más profundo, cuando abierto en el aireya es de todos los hombres
Y ya tu canto es de todos los hombres
Y ya tu canto es de todos los hombres
Y ya tu canto es de todos los hombres
Y ya tu canto es de todos los hombres

segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

Complicar a vida é a "arte" mais fácil de todas

Dizia Nietzsche que, em geral, "quem vê mal, vê menos do que aquilo que há para ver;  e quem ouve mal, ouve algo mais do que aquilo que há para ouvir". Daí poder-se-ia inferir muita coisa, como, no primeiro caso, enxergar o que não há e deixar de ver o que há. A hermenêutica poderia ser multiplicada. O fato é que, por essas vias, a convivência vai tropeçando. E disso que, com cariz literário, trata o texto a seguir.

Golconda, de René Magritte 

Por André J. Gomes 

Seis da tarde. Na Hora do Ângelus, o trânsito no bairro nobre é um inferno. Pais e mães entopem as ruas, estacionados em filas duplas, à espera de seus filhos nas portas de escola. Executivos aceleram carrões rumo ao bar vaidoso para a happy hour onde encontrarão outros executivos que ali também chegaram sozinhos, pilotando cada um a sua máquina. Manadas de ônibus coletivos levando e trazendo trabalhadores cansados, vendedores de doces, desempregados famintos, estudantes otimistas e almas entregues avançam nervosos sobre os motoqueiros que costuram o espaço entre os carros. O sol se foi mas o asfalto queima, os nervos fervem.
À certa altura, um motorista apressado “rouba” a frente do carro que anda na faixa ao lado e o cidadão ultrapassado aperta a buzina, dirigindo a seu oponente um gesto súbito.
“O que foi isso?”, pergunta a si mesmo o sujeito do carro que tomou a frente. “Reclamando do quê, tartaruga? Quem mandou ir tão devagar? Avanço mesmo!”
Pelo espelho retrovisor, ele observa seu colega de trás que agita os braços, aponta-lhe o dedo, xinga-lhe do que ele não pode ouvir. “Que se dane! Que berre à vontade!”, diz consigo antes de ignorar o condutor ofendido e retomar o caminho no “anda e para” do tráfego intenso.
Mas o retardatário não desiste. Colado à sua traseira, tenta sem sucesso trocar de faixa e emparelhar seu veiculo ao dele. Acende-lhe o farol alto, buzina, mexe os braços como quem precisa desabafar o inadiável àquele que lhe tomou a frente.
“Esse cara quer briga. Não é possível! Que absurdo! Foi só uma fechada à toa!”
O trânsito de súbito alivia, os carros ganham velocidade e o homem com pressa prepara sua fuga. “Quero ver me pegar, ó roda presa! Tem pra ninguém aqui, não. Motor dois ponto zero, quatro cilindros! Vai comer poeira, companheiro!”
Disparando na frente, ele ensaia uma gargalhada e engasga de susto ao notar o extraordinário: o veículo em seu retrovisor o acompanha sem medo. Continua ali, em sua cola, gesticulando incansável. Ele se sente acossado e nervoso. Nunca funcionou bem sob pressão. Odeia se sentir oprimido. Desde pequeno, espanava feito parafuso à menor imposição.
“Tá olhando o quê, cretino? O quê? Como é? Não faz gesto feio pra mim, não! Vai pro inferno, seu trouxa!”
Ele afunda o pé no acelerador enquanto fala alto consigo mesmo, esbravejando contra seu antagonista desconhecido do carro de trás. “Não vou pedir desculpas, não! Mas não vou mesmo! Esse cara precisa é de uma terapia urgente! Bicho burro!”
Em poucos segundos, ele realiza a cena inteira. “Esse animal vai descer do carro e avançar contra mim. Que venha! Dou-lhe um murro na cara e esfrego a cabeça dele no asfalto. Pode vir!”
Um motoqueiro passa a meio milímetro de seu para-choque, uma ambulância costura entre os carros e a perseguição continua. O farol, a buzina, os gestos. Tudo! “Esse cara quer briga! É briga? ENTÃO É ISSO QUE ELE VAI TER!”
De repente, uma chance. O farol se fecha num grande cruzamento e o motorista de trás consegue emparelhar seu carro com o dele. Acossado, ele solta o cinto de segurança, pronto para voar na garganta de seu rival. O perseguidor misterioso não sai do carro. Só desce o vidro e grita o impensável:
— A sua porta. A sua porta está aberta.
Silêncio. O homem perseguido, pronto para matar ou morrer respira fundo, mirando seu interlocutor do carro ao lado. Sua raiva, seu ímpeto de morte, suas mãos suando e seu medo foram à toa. Não haveria briga, embate, cara no asfalto. O motorista ao lado só queria lhe fazer uma gentileza. A porta de seu carrão estava aberta e alguém tentava avisá-lo. Que decepção. Tudo isso para nada! O lesma-humana o perseguiu, provocou-lhe a imaginação, despertou seu instinto de fuga ou luta só para isso? Para avisar que a porta estava aberta e depois ficar ali, com cara de pedinte, esperando um “obrigado” e um toque na buzina? Muito bem. É preciso retribuir o gesto. A porta está aberta e alguém acaba de avisá-lo. Então ele respira fundo e dispara:
— FOI A SUA MÃE QUEM DEIXOU ASSIM!
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Fonte: http://www.revistabula.com/


Ela é uma bossa, é Bossa

Nova. Musicalmente, é ao que se consigna este 25 de janeiro no Brasil: à Bossa Nova. Diz-nos a história: trata-se de um movimento musical surgido entre os anos 1950/1960, tendo como indutores João Gilberto, Tom Jobim, Vinicius de Moraes, Roberto Menescal, além de outros jovens cantores e/ou compositores, com significativa influência do jazz.  Temos ainda Wanda Sá como uma das mais conhecidas intérpretes. Em tempos de "estilo musical duvidoso", como os atuais, a menção a gêneros fora do gosto propalado pela indústria cultural, pode soar como manifestação de vanguarda (entendido isso como expressão de elite ou o que se queira). Que seja. Abonar o mau gosto significa capitular perante a mediocridade. Pois bem, a Bossa, como 'vertente do jazz', estará se fazendo presente no Festival de Jazz do Agreste de Pernambuco, na cidade de Gravatá, entre os dias 06 e 09 de fevereiro. 

Trata-se, como se percebe, do período carnavalesco. O Festival é uma opção para quem busca um 'Carnaval diferente'. De resto, também no ageste pernambucano, há alternativas para carnavais de expressão cultural mais típica, nas cidades de Bezerros e Pesqueira. Mas, no jazz e na Bossa, por ocasião deste 25 de janeiro, vale ver e ouvir o legendário Dave Brucbek e o seu quarteto em 'Take Five'. Aí abaixo. 


domingo, 24 de janeiro de 2016

Tempo: sabedoria e arte de envelhecer

O passar dos anos significa, de determinada forma, sairmos de nós. Vermo-nos, em todos os sentidos, como éramos antes – com todas as implicações aí contidas. E lições (as mais diversas)  a tirar, para continuar a jornada. É o tempo, a sabedoria e a arte de envelhecer. A propósito, vale  a pena conferir o artigo aí abaixo de Drauzio Varella. 

José Saramago e Pilar del Río: "Não nos vemos se não nos
saímos de nós"
 

Por Drauzio Varella 
(Médico; dirigiu o Serviço de Imunologia do Hospital do Câncer/SP) 

Achei que estava bem na foto. Magro, olhar vivo, rindo com os amigos na praia. Quase não havia cabelos brancos entre os poucos que sobreviviam. Comparada ao homem de hoje, era a fotografia de um jovem.
Tinha 50 anos naquela época, entretanto, idade em que me considerava bem distante da juventude. Se me for dado o privilégio de chegar aos 90 em pleno domínio da razão, é possível que uma imagem de agora me cause impressão semelhante.
O envelhecimento é sombra que nos acompanha desde a concepção: o feto de seis meses é muito mais velho do que o embrião de cinco dias.
Lidar com a inexorabilidade desse processo exige uma habilidade na qual nós somos inigualáveis: a adaptação. Não há animal capaz de criar soluções diante da adversidade como nós, de sobreviver em nichos ecológicos que vão do calor tropical às geleiras do Ártico.
Da mesma forma que ensaiamos os primeiros passos por imitação, temos que aprender a ser adolescentes, adultos e a ficar cada vez mais velhos.
A adolescência é um fenômeno moderno. Nossos ancestrais passavam da infância à vida adulta sem estágios intermediários. Nas comunidades agrárias, o menino de sete anos trabalhava na roça e as meninas cuidavam dos afazeres domésticos antes de chegar a essa idade.
A figura do adolescente que mora com os pais até os 30 anos, sem abrir mão do direito de reclamar da comida à mesa e da camisa mal passada, surgiu nas sociedades industrializadas depois da Segunda Guerra Mundial. Bem mais cedo, nossos avós tinham filhos para criar.
A exaltação da juventude como o período áureo da existência humana é um mito das sociedades ocidentais. Confinar aos jovens a publicidade dos bens de consumo, exaltar a estética, os costumes e os padrões de comportamento característicos dessa faixa etária, tem o efeito perverso de insinuar que o declínio começa assim que essa fase se aproxima do fim.
A ideia de envelhecer aflige mulheres e homens modernos, muito mais do que afligia nossos antepassados. Sócrates tomou cicuta aos 70 anos, Cícero foi assassinado aos 63, Matusalém sabe-se lá quantos anos teve, mas seus contemporâneos gregos, romanos ou judeus viviam em média 30 anos. No início do século 20, a expectativa de vida ao nascer nos países da Europa mais desenvolvida não passava dos 40 anos.
A mortalidade infantil era altíssima; epidemias de peste negra, varíola, malária, febre amarela, gripe e tuberculose dizimavam populações inteiras. Nossos ancestrais viveram num mundo devastado por guerras, enfermidades infecciosas, escravidão, dores sem analgesia e a onipresença da mais temível das criaturas. Que sentido haveria em pensar na velhice quando a probabilidade de morrer jovem era tão alta? Seria como hoje preocupar-nos com a vida aos cem anos de idade, que pouquíssimos conhecerão.
Os que estão vivos agora têm boa chance de passar dos 80. Se assim for, é preciso sabedoria para aceitar que nossos atributos se modificam com o passar dos anos. Que nenhuma cirurgia devolverá aos 60 o rosto que tínhamos aos 18, mas que envelhecer não é sinônimo de decadência física para aqueles que se movimentam, não fumam, comem com parcimônia, exercitam a cognição e continuam atentos às transformações do mundo.
Considerar a vida um vale de lágrimas no qual submergimos de corpo e alma ao deixar a juventude é torná-la experiência medíocre. Julgar, aos 80 anos, que os melhores foram aqueles dos 15 aos 25 é não levar em conta que a memória é editora autoritária, capaz de suprimir por conta própria as experiências traumáticas e relegar ao esquecimento inseguranças, medos, desilusões afetivas e as burradas que fizemos nessa época.
Nada mais ofensivo para o velho do que dizer que ele tem "cabeça de jovem". É considerá-lo mais inadequado do que o rapaz de 20 anos que se comporta como criança de dez.
Ainda que maldigamos o envelhecimento, é ele que nos traz a aceitação das ambiguidades, das diferenças, do contraditório e abre espaço para uma diversidade de experiências com as quais nem sonhávamos anteriormente.
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Fonte: Folha de São Paulo, versão para assinantes, edição do dia 23/01/2016


sábado, 23 de janeiro de 2016

O eterno agora: sozinho, solitário, solitude

  
Tem circulado, nos últimos dias, uma interpretação de Paul Tillich a propósito do 'estado solitário e sozinho' que é um verdadeiro acinte ao pensamento do autor. Quem compartilha, nas redes sociais, certas coias deveria se certificar melhor sobre o que está repassando (principalmente se é docente). Ora exclui-se o que Tillich entende por solitude, ora funde-se o solitário e o sozinho como 'uma espécie de tragédia' e, por vezes, paradoxalmente, apresenta-se, em nome do existencialismo,  estes dois estados como 'dado ontológico' para 'efetivamente realizar a existência humana'. Como se fosse possível 'realizar a existência' sem interação, sem companhia, sem compartilhar os sentimentos dessa existência. Mais grave ainda é se apresentar isso como versão do existencialismo. A imagem de uma pessoa isolada, sem ter com quem dialogar/dizer as suas confidências, sem ter a quem falar as últimas palavras no leito de morte, é o reflexo de alguém de uma vida amargurada e incapaz de estabelecer/sustentar relações - isso em nada tem a ver com existencialismo. Para início de conversa, em The Eternal Now ('O Eterno Agora'), Tillich afirma: "Langauge has created the word ‘loneliness’ to express the pain of being alone. And it has created the word ‘solitude’ to express the glory of being alone (algo como, em tradução direta e sintética: a linguagem criou a palavra solidão para expressar a dor de estar sozinho. E criou a palavra solitude para expressar a glória de estar sozinho). Do ponto de vista etimológico, em língua portuguesa, solidão e solitude têm raiz no latim solitudine. A questão é que, de modo geral, se coloca de parte  o significado da palavra solitude presente na raiz latina solitudine (ou até mesmo se desconhece a referida dupla perspectiva). Vale então uma leitura, no original, do vasto trabalho de Paul Tillich.  



quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

Por trás das palavras


Por Ana Macarini

Palavras podem ser apenas inocentes rabiscos no papel, ou um amontoado de letras digitadas e refletidas numa tela. Podem ser vazias, e assim, não serão mais inocentes; porque palavras vazias têm a curiosa capacidade de nos roubar o que preenche a vida de sentido. Podem ser estudadas, planejadas e estrategicamente colocadas para produzir efeitos previamente desejados; ou podem vir direto daquela parte orgânica de nós que produz os mais limpos e honestos sentimentos; essas revelam muito sobre nós, justamente por serem espontâneas, diretas, verdadeiras. No entanto, não devemos nunca duvidar de seu poder; uma única palavra pode levantar ou derrubar um ser humano num momento de fragilidade física ou emocional.
Ainda bem pequenos aprendemos o poder da palavra; descobrimos que ao conseguirmos nomear as coisas ou – ainda mais importante – revelar o que sentimos, tornamo-nos mais aptos a conseguir satisfazer nossos desejos ou necessidades. A capacidade de nos fazer entender e de entender o outro, por meio da palavra, nos confere um atributo inerente e particular do ser humano: temos um código de sinais, sonoros ou escritos que nos insere num grupo maior; e, com alguma sorte, mais humano, porque fala e entende a nossa língua.
Ao longo da nossa existência vamos descobrindo, por meio de experiências, dolorosas ou de sucesso, a forma mais eficiente de manipular o sentido das palavras e, assim, garantir ou distorcer a verdade, a depender de nossas intenções, de nosso caráter e dos valores que nos movem.
Ansiosos que somos, em virtude da nossa maneira de funcionar, incluídos ou à margem do mundo, abrimos mão da habilidade de ouvir nossos semelhantes. Enquanto o outro fala, nossa mente trabalha em ritmo frenético, ora buscando antever a sua próxima fala, ora buscando a melhor maneira de fazer oposição ou argumentar em nosso favor ou defesa. Essa inquietação nos coloca numa situação bastante estranha: como não nos ouvimos uns aos outros (NUNCA!), passamos uma existência inteira sem saber exatamente o que pensamos, queremos, lamentamos ou tememos da vida. Passamos a vida reagindo apenas; nada de reflexão, nada de interação; péssima comunicação.
O fato é que o que dizemos, queiramos ou não, nos define aos olhos do mundo. Se formos agressivos, despertaremos no outro a instintiva necessidade de defesa ou ataque. Se formos assertivos, habituaremos o outro a nos conceder alguma atenção, uma vez que nossa postura inspirará confiança e firmeza. Se formos demasiadamente complacentes, conferiremos ao outro o direito de nos diminuir, desmerecer e subjugar, já que exibimos uma imagem frágil e insegura. Se formos tranquilos, corretos e gentis, ainda que demore um pouco, acabaremos por encontrar o nosso lugar nesse vasto mundo; acabaremos por manifestar no outro uma postura mais flexível e acolhedora; conseguiremos, com a nossa atitude, contagiar o entorno e transformar, um pouquinho a cada dia, a forma como o mundo nos enxerga, interpreta e trata.
A descoberta da palavra pode ser apenas uma das nossas inúmeras aprendizagens nesse planeta; pode significar apenas o domínio de um código de troca de informações; pode representar algo pouco importante do ponto de vista da evolução, caso nos conformemos apenas em reproduzi-las. Entretanto, como tudo na vida, há sempre outras inúmeras opções. Que o domínio desse maravilhoso recurso de comunicação seja entendido como uma ferramenta de aproximação e não de confronto ou julgamento. Que ao formarmos imagens mentais do nosso discurso, sejamos mais capazes de considerar que os outros têm o direito de nos interpretar. Que a nossa habilidade de juntar palavras, ultrapasse a esfera da manipulação e nos faça compreender que, ao defender o direito de expressão e manifestação de todos – inclusive dos que discordam de nós –, estamos, também, garantindo que seja ouvida e respeitada a nossa voz.
No dia em que tomarmos consciência que aqueles que almejam o bem maior precisam colocar em atitudes o que tão habilmente discorrem em palavras; que o abuso de poder só acontece quando nos calamos, por covardia, concordância ou conveniência; que o que se fala só tem valor quando acompanhado de postura coerente; que palavras mordazes,  depreciativas e ofensivas só servem para nos diminuir, enquanto tentamos diminuir o outro, estaremos prontos para expressar apenas o que for para construir, elevar e acrescentar. Neste dia, nossa palavra terá o valor de uma promessa que já nasceu pronta para ser cumprida; terá a força de uma prece sentida e a energia de transformação e cura que acompanham apenas aqueles que honram o que dizem e dizem apenas o que são capazes de cumprir.
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Fonte: http://www.contioutra.com/. Título original: 'Honrar o que se diz e dizer apenas o que se puder cumprir'. 
            

terça-feira, 19 de janeiro de 2016

Permanência dos desejos (in)conscientes

Por Fernanda Villas Boas 

O que veremos analiticamente em 'Invenção de Orfeu' é o começo da simbolização dos desejos inconscientes, que se colocam entre o desejo e a demanda. Por exemplo, os fantasmas da vida intra-uterina, de cena primitiva, de castração e sedução. Muitas vezes, é difícil separar os fantasmas puramente imaginários daqueles ligados a acontecimentos vividos. Se há acontecimentos reais que marcaram o psiquismo, eles passam por uma profunda manipulação imaginária. O que Freud pediu, em vão, à linguagem ele teria podido pedir de alguma forma à poesia. Certas formas de poesia aparentam-se ao sonho e sugerem o mesmo modo de estruturação, como em 'Invenção de Orfeu', que introduz nas formas normais da linguagem essa suspensão de sentido que o sonho projeta em nossas atividades, mas então é paradoxalmente no surrealismo poético, que Freud não compreendeu, que poderia ter encontrado o que tanto procurou erradamente na linguagem codificada e organizada. Após este discurso teórico, voltemos à imagem central da evocação da infância:
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Era um cavalo feito em chamas Alastrado de insânias esbraseadas; pelas tardes sem tempo, ele surgia e lia a mesma página que eu lia.
Depois lambia os signos e assoprava a luz intermitente destronada, então a escuridão cobria o rei Nabucodonosor que eu ressonhei. Bem, eu sabia que ele não sabia a lembrança do sonho subsistido e transformado em musas sublexadas.
Bem se sabia: a noite que o cobria era a insânia do rei já transformado no cavalo de fogo que o seguia (Canto IV). Dentro da exploração sistemática dos sinais recebidos pelo poeta, o narrador expressa seu ego inconsciente. A “Fundação da Ilha”, que está no capítulo I, significa o nascimento do homem que vai em busca de si próprio ao longo da narrativa. O que existe, pois, logo no início, é um processo de regressão desviado através de imagens associativas, ou paradigmáticas no decorrer do livro, que é também meu mundo. Desse leite profundo emergido do sonho, coagulou-se essa ilha e essa nuvem e esse rio e essa sombra bulindo e esse reino e esse pranto e essa dança contínua amortalhada e pia.
Dois sintagmas não proeminentes desta estrofe, uma vez que expressa dentro de uma linguagem metafórica o impulso da criança, expresso por “emergido” e todo o processo do parto em si, “coagulou-se”; “bulindo” expressa precisamente o movimento da criança ao sair do útero materno. Desta sorte, o poeta nasce como uma “ilha” e deve daí em diante cantar a sua história desde a infância, até a sua fase adulta. Poderíamos dividir a obra em três momentos dialéticos a serem estudados dentro da estrutura. Estes são a repressão ligada ao desejo, a busca incessante de si próprio e a realização pessoal ou vitória sobre passadas angústias. 
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No Canto I da 'Invenção de Orfeu' notam-se momentos de tateio, como se o autor andasse em busca de uma expressão própria e adequada que ainda se lhe furta. O narrador épico é o objeto da narrativa. O narrador deixa de vigiar-se, às vezes, e é arrastado por regressões à infância que se tornará um dos temas principais, pois esta constitui o ponto crucial de todo o discurso poético. O poeta se abandona, se perde, sentindo-se incapaz de recomeçar, até quando reconstrói um novo ser, através de uma linguagem nova ao longo de todos os momentos dialéticos do poema. A travessia é escura e amedrontadora. Trataremos das imagens recorrentes, que dizem respeito aos temas principais. Todo o nosso trabalho, contudo, deverá ser visto sob um só ângulo, e este será eventualmente, o ângulo psicanalítico da obra, pois senão correríamos o perigo de perder-nos nas outras leituras, que naturalmente serão mencionadas, mas que não teremos interesse em aprofundar, dado que o ângulo que escolheremos se nos afigura o mais revelador. O poema nasce de uma angústia de ser. E é desta angústia insaciável que ele vai-se tornando independente em cada Canto. Não há também um fim determinado. Podemos voltar à 'Invenção de Orfeu' de várias maneiras, num movimento cíclico, com significados novos em cada leitura. No primeiro movimento, encontramos a regressão. A “ilha”, é o signo escolhido para representar a viagem interior de Lima. Será portanto um referente mais forte que outros. A “ilha” é o seu sonho em termos especiais e temporais, que o manterá conexo. A “ilha”, é o nascimento para o futuro. O resto, é tempo morto, pré-estabelecido e o qual ele vai sempre questionar e criticar através de sua linguagem subversiva e transparente, i.e., sem máscaras já utilizadas, sem nada. É o início. Um barão assinalado meu brasão, sem gume e fama cumpre apenas o seu fado: amar, louvar sua dama, dia e noite navegar, que é de aquém e de além-mar a ilha que busca o amor que ama.
Este início de viagem, é o canto do anti-herói épico que cantará com mais vigor até o último Canto. Estará sempre contra os princípios e valores padronizados. Deverá nascer para a Terra e contar sua história, dentro de uma ilogicidade do pensamento onírico, que se fará bastante lógica através do discurso poético. Verto-me em ilha, vejo-me nascer, retiro dessa ilharga verdadeira a minha perdição por companheira.
A sua existência aflora entre os aspectos geográficos de Maceió, que por sua vez é quase uma ilha, uma vez que está cercada por duas lagoas e o mar. O carinho aos nativos, à simplicidade das coisas também está presente dentro desta busca do Início. Indícios de canibais sinais de céu e sargaços, aqui um mundo escondido geme num mundo perdido
Apela para o renascimento do ar parado e sufocante da “ilha”. O poeta quer poesia viva e é através daquela que vai renovar-se prosseguindo viagem. Contudo, como um anti-herói sente-se impotente e atado a si próprio, sem chaves, sem rumo certo, nem armas para lutar. Sente-se frágil em face ao mundo e à viagem que vai executar, com os olhos de uma criança. Quer descobrir quem é, para daí ter uma voz própria, cantar meu canto. Daí, a ambiguidade de vários temas, como falo, dentro da linguagem lacaniana, que representa o primeiro desejo da criança. Lima, o usa com significado duplo, assim como o faz com outros temas. Um exemplo de falo, estará: Embora: escutai-me que eu falo com a voz inata que diz que a voz não é essa que fala por mim, talvez minha fala saída de ti (Canto VI) 
A partir do momento que descreve o mundo com os olhos de uma criança, faz uma viagem à vida intra-uterina, superpondo com bastante lógica, as sensações, desde a saída do útero, ao primeiro choro, e todo o processo infantil.
Em que útero fundo este ovo cabe no regaço alcançado em que te vês?
O processo metonímico vai-se tornando cada vez mais constante, interligando os versos musicalmente. Um grito de liberdade preso na garganta. Tentaremos interrelacionar inúmeras imagens que dizem respeito à Voz e à Fala. É fácil descobri-las se nos prendermos a uma leitura ligada ao tema da Infância. Também, dentro deste tema, a necessidade de criar Orfeu. Sua música, seu sentido pleno de amor, suas viagens subterrâneas, em busca de Eurídice. A criação de um Orfeu, não tão heróico-épico, mas o Orfeu, homem, cujo principal objetivo será o de encontrar sua companheira. Aí está constituída a Invenção, aí está todo um processo criativo, dito através de contínuas associações de pensamento, cujo eixo principal recai metáfora maior: a busca de si próprio. Sua voz, terá que ser ouvida, mas para isto serão necessários caminhos árduos e escuros. Aparições, medos dentro de corredores infindos. Dentro da linguagem psicológica, sabemos que é através da fala que a pessoa se pronuncia em sua totalidade, o que enfatiza mais uma vez o processo de regressão. É também através da linguagem onírica que se expressa sem censura o desejo do Outro. Em outras palavras, a criança quer ser o desejo de sua mãe, com o rival do seu pai, dentro da linha edipiana. Assim, virão uma série de imagens poemáticas, ligadas à necessidade incestuosa da mãe, as zonas erógenas, o desejo suplantado por vários objetos substitutos na demanda de um novo início, dentro da ordem natural do crescimento humano.
Tudo é memória, meu ser não houve nem amanhece; contudo, nunca ninguém nos ouve.
A motivação fônica não é feita diretamente. Há sempre um decodificador que a intercala num conceito intermediário, semi-material, semi-abstrato, que funciona como uma chave dentro da linguagem associativa, operando a passagem de certa forma desmultiplicada, do significante para o significado. O eixo metafórico-metonímico é a base para a compreensão destas associações. Os cinco sentidos são evocados e se interligam em belas imagens sinestésicas, formando uma gama de sentido que se opõem e se completam: Preâmbulos sempre constantes, depois choro nos mirantes, e a privação dos sentidos, e esse tatear de pesquisas, e essa tortura espacial, e essa unidade da dor, e essa roca no silêncio, e essa unidade sem fim. (I _ XXIII). 
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Fonte: http://obviousmag.org/. Título original: 'Orfeu e o Desejo Inconsciente'. 


Do gosto pelo rito à improdutividade da ação: a educação entre a lucrativa apologia das citações e a busca por alternativas

Já está disponível o primeiro número do ano de 2016 da Revista Espaço Acadêmico. Participo do mesmo com um artigo que vai na contramão de determinadas abordagens em educação, voltadas à mera apologia panfletária de autores. São abordagens que se dizem críticas, mas não assumem uma postura crítica das obras dos seus 'teóricos-gurus'. Na referida perspectiva, começo por colocar em realce uma 'antropologia do rito', o peso do simbólico, para assinalar como mentes (limitando-se a glorificar autores) participam de um jogo em que, ao mesmo tempo que se afundam na mediocridade (não tendo pensamento próprio), também auferem lucros pela devoção ao 'sacerdote', ao 'grande guia'. Aí abaixo, a parte inicial do artigo. Pode ser lido integralmente aqui: http://periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/issue/view/1045


Evidenciando o peso da tradição e dos rituais, o antropólogo inglês Edmund Leach costumava descrever com relativa frequência a solenidade em que foi tornado knight[1] pela rainha. Com a ironia que o caracterizava, procurava escapar do riso que em si mesmo provocava ao narrar a celebração ritual que se submeteu no ato de sua sagração à Corte de Saint James. Once a knight is quite enough[2], era o título da conferência que proferiu vezes várias contando o dito fato.
A ironia entrecortada de erudição de Leach e o seu sentimento pela revivescência ritualizada de um momento de passagem da condição de “pessoa comum” para a de integrante de uma ordem nobilitada (que mesmo que não seja sagrada tem algo de distinto que se reserva às altas hierarquias), todavia, denunciavam o antropólogo. Ele não conseguia esconder que havia gostado do rito e da redenominação simbólica a que se submeteu, apesar de o seu ofício ser o de analisar a realidade, o que significa problematizá-la incontidamente, e assim sendo inquirir até mesmo a razão de ser do próprio ritual no qual tomou parte e o tornou knight.
Muito embora o âmbito acadêmico seja uma esfera plebeia, por comparação à Corte de Saint James, a verdade é que também nela se verificam sagrações que não têm necessariamente a ver com os ritos de passagem próprios da vida universitária, mas sim com a reprodução de fidelidade a autoridades teóricas que, em última instância, dão expressão à “falácia lógica” que os antigos latinos definiam como argumentum magister dixit  - ‘o argumento da autoridade’. O fato é que a apreciação científica do rito de passagem não eliminou a sua força valorativa, no sentido em que esta se vincula a um universo hierárquico que sanciona a distinção. As análises dos ritos de passagens, em diferentes sociedades, reafirmaram a sua dimensão valorativa, ao invés de colocar a descoberto os interesses político-sociais que subjazem aos valores que os revestem.
A tradução disso no contexto universitário tem mais de uma face. Contudo, o mais habitual se revela pela constituição de ‘escolas de pensamento’ que, derivadas de autores, tornam-se fieis depositárias do que eles formularam, cuidando da reprodução das suas teses, guardando a ‘sua memória’, buscando – através de publicações,  eventos, etc. – novos adeptos. E nisso estão envolvidos os jogos de interesse das (micro e macro) relações de poder, no sentido realçado por Pierre Bourdieu a propósito do campo científico, isto é, enquanto sistema de relações adquiridas, como espaço de jogo de uma luta concorrencial, onde está em questão o monopólio da autoridade sobre o direito de dizer. A banalização da citação pela citação, num movimento que cita e recita a autoridade-guia, tem a ver com essa realidade.  Ademais, a necessidade de citar vincula-se a uma espécie de ‘humilde sacerdócio’, pois, na medida em que o discípulo cita e recita, o grande sacerdócio suscita e ressuscita. Contudo, a identificação com o ‘profeta’ não é apenas um exercício de sacerdócio, pois ela gera dividendos, ou seja, ‘lucros’.





[1] Cavaleiro. No Reino Unido, o título de Sir, utilizado como prefixo ao nome, é usado após as inicais da cavalaria.

[2] Uma vez cavaleiro é o bastante.

domingo, 17 de janeiro de 2016

"Fogata" que guia

Latinoamérica, Buenos Aires e a arte no sentido de viver. 


Bolsas de estudo da ONU


A Organização das Nações Unidas (ONU) está com inscrições abertas até o dia 24 de janeiro de 2016 para o programa “Post-graduate study on Nano-Satellite Technologies (PNST)”, que oferece bolsas de estudo para licenciados e mestres realizarem cursos de pós graduação em tecnologias de nanossatélites no Instituto de Tecnologia Kyushu. As bolsas de mestrado e doutorado são destinadas a cidadãos de países em desenvolvimento e são para cursos no Japão.  Os bolsista receberão 145000 yen mensais até o final do programa (2 ou 3 anos), para cobrir os custos de manutenção, hospedagem, transporte local e outros. Cada bolsista irá receber passagens aéreas na classe econômica para ida e volta ao país de residência.

Perfil do Candidato
  • Ter nacionalidade de países em desenvolvimento;
  • Ter nascido após 2 de abril de 1981;
  • Ser indicado por um pesquisador com produção bibliográfica de alto nível (artigos em revistas indexadas); 
  • Possuir a formação acadêmica e profissional exigida pelo programa: Para Mestrado, deverão ter concluído uma licenciatura. Para Doutoramento, deverão ter concluído um mestrado;
  • Ser capaz de fazer uso profissional da experiência adquirida no programa de bolsas. 
Prazo de Inscrição: Até 24 de janeiro de 2016

Para saber mais informações, consultar o edital completo.

sábado, 16 de janeiro de 2016

Ser e tempo: a vida que encontramos, a existência que construímos

Segue aí abaixo uma breve incursão na obra 'Ser e Tempo', de Heidegger. Reflexão necessária ao sentido da existência. É, de longe, uma das vias de interpretação do pensador alemão que prefiro, na medida em que tomo parte no 'treino do debate' existencialista. A conferir. 

Centro histórico da cidade portuguesa de Guimarães - 2016: o 'segredo' do
 ser no tempo 

Por André Coelho
(UFPA)

"Ser e tempo" aborda de maneira original uma das mais antigas questões da humanidade: a questão do ser. Vou, inicialmente, dizer do que se trata essa questão, que, embora seja bastante abstrata, depois de compreendida se revela fundamental.
No nosso dia-a-dia, falamos de muitas coisas que existem. Falamos de coisas que têm existência objetiva, como cidades, ruas, casas, carros, roupas, relógios, mesas, cadeiras, telefones celulares, etc. Falamos também de pessoas, de homens, de mulheres, de brancos, de negros, de crianças, de adultos, de jovens, de idosos etc. Falamos também de relações, de perto, de longe, de maior, de menor, de mais belo, de mais rápido, de mais barato, etc. Falamos ainda de coisas cuja existência é subjetiva, como pensamentos, sentimentos, lembranças, imaginações, sonhos, ilusões de ótica, etc. Falamos, finalmente, de coisas cuja existência é cultural, como valor da moeda, movimento da bolsa de valores, conhecimento, arte, religião, prestígio, honra, virtudes, etc. São infinitas coisas de muitos tipos diferentes, mas que têm em comum o fato de que podemos falar delas como coisas que existem ou não existem. 
Essa "existência" é o fenômeno que a filosofia chama de "ser". As coisas que "são" são as coisas que "existem", as que "não são", as que "não existem". Porém, que significa existir e não existir? Ou, como agora vamos falar, que significa ser ou não ser? (aqui talvez lhe venha à mente a famosa fala da personagem Hamlet, na peça homônima de Shakespeare: "Ser ou não ser: eis a questão", mas o príncipe da Dinamarca se perguntava sobre se era melhor continuar vivendo ou dar fim à sua vida, e não sobre a questão do ser no sentido filosófico que estamos abordando.)

Para uma mesa, por exemplo, ser significa ocupar certo lugar no espaço e no tempo (ser como ser, em geral, alguma coisa no mundo) e ter certas propriedades comuns a todas as mesas (ser como ser, em especial, uma mesa). Mas essa definição de ser não serviria, por exemplo, para um pensamento, ou para uma relação. O pensamento existe na subjetividade do pensador, enquanto a relação existe na percepção de quem a contempla. A coisa pode ficar ainda mais difícil se falarmos de memórias, de ilusões, de miragens, de sonhos etc.

Tomemos a frase seguinte: "Unicórnios não existem". O que significa dizer que tais seres "não existem"? (aqui convém distinguir entre não existir enquanto entidade concreta e não existir enquanto conceito, pois os unicórnios, enquanto conceito, existem, do contrário a frase "Unicórnios não existem" não poderia ser formulada. Também convém distinguir entre existir enquanto entidade concreta no mundo real e existir enquanto entidade concreta num mundo fictício, porque, num conto de fadas, por exemplo, um unicórnio pode perfeitamente existir não apenas enquanto conceito, mas também enquanto entidade concreta, como, por exemplo, o animal em que a mocinha monta para fugir de seus perseguidores.) Significa que nunca ninguém viu um unicórnio? Ora, mas nunca ninguém viu o ar, ou a gravidade, ou a raiz quadrada de dois, e todas essas coisas existem (embora aqui seja aconselhável chamar a atenção para o fato de que o ar, a gravidade e raiz de dois são coisas cujas propriedades não implicam a possibilidade de serem vistas, enquanto unicórnios, se existissem com as propriedades que se atribuem a eles, certamente teriam que poder ser vistos. Por isso, nunca se ter visto um unicórnio tem uma relevância diferente de nunca se ter visto coisas, como o ar, a gravidade e a raiz de dois, cuja natureza inclui a característica de não serem visíveis). Significa que não há entidades concretas que preencham as condições para serem reconhecidas como unicórnios, quer dizer, que não há nenhum cavalo com um chifre frontal? Talvez, mas essa explicação contém a expressão "não há", que é apenas uma variante de "não existe", que é exatamente o que queremos explicar.

Passando de unicórnios para coisas mais sérias: Os átomos, eles existem? Bem, existem teorias sobre os átomos, modelos de sua estrutura, funcionamento, relação entre si. Existem milhares de teorias e pesquisas que pressupõem a existência desses átomos e milhares de aparelhos tecnológicos que funcionam a partir dessa suposição. Mas os átomos não são objeto de percepção, como as hemáceas e os leucócitos, que podem ser vistos ao microscópio. Como se poderia provar que eles não são apenas entidades hipotéticas, cuja pressuposição de existência nunca foi refutada por um teste empírico? Como se poderia provar que, além de serem supostos como existentes em teorias que são empiricamente bem-sucedidas, eles realmente existem? Bem, isso depende da resposta que se tenha para a questão do que significam "ser" e "não ser".

Heidegger diz que a tradição filosófica dos gregos em diante sempre identificou o ser com a presença no mundo. Assim, segundo tal tradição, ser era estar presente no mundo e não ser era não estar presente no mundo. Segundo Heidegger, isso é um erro, porque, se se entende por "presença" a possibilidade de ocupar lugar no espaço e no tempo, toma como resposta geral sobre a questão do ser uma resposta que pode servir, quando muito, para o ser dos objetos materiais, para o ser, por exemplo, de mesas e cadeiras. Ora, tomar como referencial do que é o ser a descrição do ser de objetos materiais é generalizar para todos os outros entes ("entes" são as coisas que são, que existem) o tipo de ser característico de certos entes em particular.

Não que se possa determinar o que é o ser sem levar em conta os entes dos quais se fala em especial, ou seja, sem levar em conta se se fala do ser das mesas, de ideias, de relações, de pessoas, de abstrações, etc. Heidegger acreditava que a resposta da questão do ser só pode ser obtida mediante o exame do ser dos entes, e, portanto, é preciso, sim, começar por algum ente ou tipo de ente em especial. Mas não via razão para começar pelos objetos materiais como os entes que acima de tudo deveriam ser examinados. Heidegger acreditava que, na tentativa de responder à questão do ser, se deveria examinar, em primeiro lugar, aquele ente que é o único que se pergunta sobre o ser, ou seja, o homem.

Aqui vale a pena chamar atenção para um ponto polêmico de interpretação das ideias de Heidegger. Heidegger não se refere explicitamente ao homem, e sim ao "Dasein", termo alemão que, embora signifique simplesmente "existência", é geralmente traduzido como "Ser-aí", porque isso facilita a posterior compreensão dos jogos conceituais que Heidegger faz com o "da" (aí) e o "sein" (ser). Pois bem, o Ser-aí é, segundo Heidegger, aquele ente capaz de se perguntar sobre o ser, aquele ente que se põe como intérprete privilegiado do ser dos outros entes. Ora, o mais natural seria identificar de cara esse ente com o homem. Contudo, uma respeitável tradição de intérpretes considera essa identificação precipitada, ou porque considera que as propriedades que Heidegger atribui ao Ser-aí pertenceriam a todo e qualquer ente que se fizesse a pergunta sobre o ser, e não apenas ao homem; ou porque interpreta que, acima do homem individual, é muito mais às coletividades, às tradições culturais, que Heidegger atribui o estatuto de Ser-aí. Em que pese essa considerável objeção, seguirei minha exposição me referindo ao Ser-aí como sendo o homem individual (essa interpretação que faço costuma ser chamada de "interpretação existencialista" do pensamento de Heidegger).

Portanto, Heidegger acreditava que, na tentativa de responder à questão do ser, se deveria examinar em primeiro lugar aquele ente que é o único que se pergunta sobre o ser, ou seja, o homem. Isso equivale a, na relação entre sujeito conhecedor e objeto conhecido, em vez de se perguntar pelo ser daquele ente que só pode ser objeto, se perguntar pelo ser daquele ente que pode ser tanto objeto quanto sujeito. Em vez de partir das coisas para determinar o ser de todos os entes, inclusive o homem, Heidegger propunha partir do homem para determinar o ser de todos os entes, inclusive as coisas.
Segundo Heidegger, em Ser e Tempo, a pergunta sobre o ser não deve se basear no ser daquele ente que são as coisas, que consiste em simples presença no mundo, mas sim no ser daquele ente que é o homem, o único ente capaz de fazer-se a pergunta sobre o ser. O ser do homem não consiste numa simples presença no mundo, e sim num Ser-aí (Dasein), o qual pode ser definido a partir dos seguintes elementos: 
- Trata-se de um projeto indefinido, autodirigido e perpetuamente inacabado: O homem, ao contrário de uma faca, uma cadeira ou uma casa, não tem essência, no sentido de um conjunto pré-definido de propriedades e atributos que ele deve adquirir ou conservar para aí sim ser de fato um homem. O homem tem existência, no sentido de que está constantemente definindo que tipo de coisa ele é.  O que ele é ele mesmo é que define. E essa definição é sempre projeção. Trata-se antes do que se quer ser e como chegar até lá. E não existe linha de chegada. Todo ponto final é ponto de partida de uma nova projeção. O homem está condenado a ser esse “espaço vazio” que pode conter e buscar qualquer projeção, mas jamais pode se deixar definir ou aprisionar inteiramente por ela. Mas essa projeção está sujeita a três condições (que são também limites), quais sejam:

i) O Ser-aí é um ser-no-mundo: A primeira condição (e também o limite) dessa projeção é a facticidade, quer dizer, aquele conjunto de circunstâncias que fazem com que um homem em particular projete certas coisas, e não outras, e seja capaz de alcançar certas projeções, e não outras. A facticidade (essa possibilitação, direcionalidade e limitação que o mundo em volta do homem exerce sobre suas projeções) se dá porque ele é um ser-no-mundo. Para Heidegger, não há que falar em homem em abstrato, fora de uma situação mundana específica. Ser homem é estar numa situação mundana em particular (nisso consiste sua “mundanidade”), situação a partir da qual certas projeções são possíveis (mundanidade como condição), mas a partir da qual também certas projeções se tornam impossíveis (mundanidade como limite). Para usar um exemplo simples de que parte da definição do homem é sua mundanidade, pense em como ser homem no Antigo Egito e ser homem no mundo atual são coisas distintas: não são ambos versões diferentes de um ser-homem em abstrato (o qual seria inclusive inconcebível), e sim duas coisas distintas, o ser-homem-no-Antigo-Egito e o ser-homem-no-mundo-atual. Para usar um exemplo simples de como a facticidade afeta as projeções, basta ver como o projeto de ser um ativista político influente não seria possível no Antigo Egito, enquanto o projeto de ser Faraó não seria possível hoje.

ii) O Ser-aí é um ser-com-os-outros: A segunda condição (e também o limite) dessa projeção é o mundo-da-vida, quer dizer, aquela rede de crenças, valores e afetos compartilhados pelos homens que vivem em certo meio social, rede que serve ao mesmo tempo de matéria-prima das projeções e de limite para elas. O homem é um ser social, não no sentido essencial de que ele quer ou precisa viver em sociedade, e sim no sentido existencial de que a definição de em que consiste seu Ser-aí se alimenta (como continuidade, renovação ou oposição) de uma massa de imagens e motivos que já existem antes dele e no qual cada homem se vê mergulhado ao fazer parte de um mundo social. Até mesmo a projeção de ser um eremita isolado só se torna possível a partir de certo mundo-da-vida no qual é possível pensar a figura do eremita como uma figura dotada de sentido. O “espaço vazio” do ser do homem precisa ser preenchido com sentidos, e sentidos são construídos, interpretados, mantidos e transformados socialmente. Esse mundo-da-vida como condição e limite existencial do homem é o ponto de partida da noção de “tradição” no mais famoso seguidor de Heidegger, Hans-Georg Gadamer (outro ponto importante, que vou apenas apontar aqui sem desenvolver, é o contraste entre a instrumentalidade das coisas, derivada do ser-no-mundo, e a não instrumentalidade dos outros, derivada do ser-com-os-outros, que, para Heidegger, tem não apenas as relevantes consequências éticas que Kant já havia apontado, mas também consequências existenciais para o tipo de projeto que é possível num mundo que se enfrenta em concurso com outros). 

iii) O Ser-aí é um ser-para-a-morte: A terceira condição (e também o limite) dessa projeção é a finitude temporal que se impõe a partir da consciência e certeza de que se vai morrer um dia. O perpétuo projetar não é eterno projetar: é constante por toda a vida, mas dura apenas enquanto durar esta última. A morte em si é só mais um elemento da facticidade, mas a consciência e certeza da morte é outra coisa completamente distinta. Sem consciência e certeza da morte, não existiria urgência nem de projetar nem de realizar os projetos projetados. Tal urgência só se mantém, além disso, porque a consciência e certeza da morte não implicam consciência e certeza da data da morte. Pode-se ser jovem e morrer amanhã, ou ser velho e viver mais vinte anos. A consciência e certeza de uma morte certa em data incerta é que pressiona todo o período de vida a ser constantemente realização de um projeto. Existe, é claro, na chamada “civilização”, uma série de mecanismos para inibir essa força opressora da morte, mas o ser-para-a-morte do homem, mesmo quando este está entorpecido por falsas certezas de completude e por temporários esquecimentos de sua mortalidade inevitável, nunca deixa de irromper de tempos em tempos na forma da experiência existencialmente liberadora da angústia. A angústia reconecta o homem com seu ser-para-a-morte e faz com que se relembre da sua incontornável condição de Ser-aí.
O desenvolvimento pormenorizado dessa “analítica existencial”, ou seja, dessa enumeração e revelação das condições (e limites) do Ser-aí do homem, enquanto ente que se faz a pergunta sobre o ser, é o que permite a Heidegger inverter o sentido tradicional da relação entre Ser e Tempo (a relação que dá nome ao livro). Se, na tradição ocidental, sob impulso de Parmênides e a partir do cânone de Platão, o tempo, como promotor do devir (o vir-a-ser, a mudança) havia sido sempre pensado como aquilo que é contrário ao ser (pois o ser, inspirado no ser dos entes que são as coisas, é aquilo que não muda, sempre permanece igual e idêntico a si próprio), agora, a partir da reflexão de Ser e Tempo, era possível visualizar o tempo como a condição sem a qual não existe o ser, desde que este seja entendido a partir do ser do ente que se pergunta sobre o ser, isto é, a partir do ser do homem, o Ser-aí. Só no tempo é que o Ser-aí pode se projetar, só no tempo é que pode se enfrentar com o mundo em busca de seu projeto projetado, só no tempo, e na consciência do tempo e certeza da morte, é que pode reencontrar o sentido de seu Ser-aí para além de toda ilusão ou esquecimento. O tempo deixa de ser o temido inimigo do ser e passa a ser – de agora em diante – seu aliado necessário.
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Fonte: http://aquitemfilosofiasim.blogspot.com.br/