sexta-feira, 28 de março de 2014

Consciência intelectual e 'solidão no alvorecer'

A propósito da última postagem (acerca do trabalho intelectual), um amigo do Rio Grande do Sul me encaminha um texto sobre a consciência intelectual, com o adorno da 'solidão do alvorecer'. É resultado das atividades do Grupo de Estudos Nietzsche, da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), e trata de um dos aforismos desse pensador (A Gaia Ciência §2), comentado por José Luiz Votto. Publicado a seguir. 
'Solidão no alvorecer', Johann Heinrich Füssli

Por José Luiz Votto 

Neste aforismo, Nietzsche questiona as formas com que as pessoas se relacionam com as suas crenças. Enquanto por uma via há aqueles que possuem crenças mesmo sem fornecer as razões para elas; por outro lado há a via da suspeita. Sendo assim, Nietzsche inicia o aforismo argumentando que embora não queira acreditar naquilo que sua experiência lhe mostra como evidente, a saber, que “a grande maioria das pessoas não tem consciência intelectual”, tal observação é palpável demais para que consiga se rebelar contra ela. O filósofo alemão diagnostica que aqueles que consideram necessária tal consciência, e a exigem dos outros, encontram-se solitários, ainda que rodeados de pessoas, como nas cidades populosas, já que não há pares nessa sua exigência no trato com as crenças.
Nietzsche também aponta que não só as pessoas são desprovidas da referida consciência intelectual, como também são indiferentes àqueles que as alertam a respeito disso. Portanto, a indiferença das pessoas frente a este questionador funciona como um agravante ao deserto da sua solidão. Isto porque a indiferença se apresenta como a ausência de oposição, ou seja, sequer existe uma tensão, uma forma de interação com o questionador, ainda que de conflito. Logo, aquele que aponta que a forma de valorar das pessoas possa estar sendo injusta não recebe como retorno sequer indignação, e quando muito a reação será a de uma risada sobre a sua dúvida.
         Assim, a consciência intelectual está diretamente ligada à suspeita, à dúvida. Para Nietzsche, a grande maioria (o que incluiria “os mais talentosos homens e as mais nobres mulheres”) sequer duvida de suas crenças, não vê o problema que é estabelecer seus valores sem uma ponderação racional: “a grande maioria não acha desprezível acreditar isso ou aquilo e viver conforme tal crença, sem antes haver se tornado consciente das últimas e mais seguras razões a favor ou contra ela, e sem mesmo se preocupar depois com tais razões”. Assim, por melhor que seja alguém, por mais que seja dotado de “bondade, finura e gênio”, ainda seria um ser inferior, posto que de nada adianta tais virtudes se tal pessoa tolera em si mesma “sentimentos frouxos ao crer e julgar”, ou seja, se esta pessoa é leviana quanto ao que acredita e não tem a necessidade de buscar a certeza, o que caracteriza os homens superiores e os diferencia dos inferiores. 

         Até no piedoso, personagem que Nietzsche não admira, o filósofo identifica um ponto que nos melhores homens e mulheres não encontrou: este tem ódio à razão, o que seria uma tomada de posição frente à consciência intelectual, rejeitando-a, o que difere daqueles que são simplesmente indiferentes à ela. O que é desprezível para Nietzsche é estar diante de “toda a maravilhosa incerteza e ambigüidade da existência” e não se posicionar, nem interrogar e nem ter ódio por quem interroga, como o piedoso. Nietzsche aponta, então, que o que procura primeiramente nas pessoas é a percepção do quanto isto é desprezível, e argumenta que “algum desatino está sempre a me convencer de que todo ser humano tem esta percepção, como ser humano. É minha espécie de injustiça”. Ou seja, está sendo injusto na medida em que pensa que todos tem tal percepção, o que está relacionado com o aforismo seguinte, §3: Nobre e Vulgar, em que escreve sobre a “eterna injustiça dos nobres”. Tal injustiça significa que os nobres consideram sua idiossincrasia do gosto necessária a todos, afirmam posições novas partindo desta sua idiossincrasia, o que só é possível na medida em que estes não sentem a si mesmos como naturezas excepcionais.

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Fonte: http://grupodeestudosnietzsche-ufpel.blogspot.com.br/2013/07/a-gaia-ciencia-2-consciencia-intelectual.html

quinta-feira, 27 de março de 2014

Trabalho intelectual: inquietação e sentido de existir


Consta que, certa feita, ao ser questionado porque viajava tanto, porque não se contentava em dizer a sua palavra em uma única universidade, Henri Lefebvre terá respondido que 'isso tem a ver com a genuinidade do meu ofício'. Queria dizer que o exercício efetivo do trabalho intelectual, do ato de pensar, superando a doxa, não se contenta com "acantonamento" em um único contexto. É como se, a cada intervenção, a cada interlocução com públicos diferentes, em contextos diferentes, se reabastecesse com mais "combustível" para continuar o exercício do ofício. Disso implica que pode se encontrar muito bem em um contexto, mas mudar para outro - aliás, foi assim com o sociólogo Manuel Castells, quando deixou a Universidade de Paris e rumou para Berkeley. É possível que Lefebvre tenha sido incompreendido em sua resposta, como é bem provável que também o sejam aqueles que da mesma forma, hoje, continuam a proceder. Em dada altura, Goehte afirmou: se me perguntares como é a gente daqui, responder-te-ei: como em toda parte. A espécie humana é de uma desoladora uniformidade; a sua maioria trabalha durante a maior parte do tempo para ganhar a vida, e, se alguns horas lhe ficam, horas tão preciosas, são-lhe de tal forma pesadas que busca todos os meios para as ver passar. Triste destino o da humanidade! Ao realçar isso, como abertura do seu livro Adeus ao Trabalho?, Ricardo Antunes acrescentou: o trabalho intelectual, em seu sentido profundo e verdadeiro, é um dos raros momentos de contraposição a esta desoladora uniformidade. Talvez assim possamos, ontologicamente, começar a entender o sentido daquela resposta de Henri Lefebvre. Mas, o genuíno exercício do trabalho intelectual, nos dias presentes, não tem sido fácil - questão esta que é enfatizada no curto artigo abaixo. 


Por Émilien Vilas Boas Reis
(Doutor em Filosofia, PUC-Rio de Janeiro) 

Qual o papel do intelectual em uma sociedade pragmática, utilitarista, “materialista” e conformada? Parece que há uma grande dificuldade em situar esta emblemática figura no mundo atual. Claro que o intelectual sempre foi considerado um pária da sociedade. Como não esquecer a simbólica figura de Giordano Bruno (1548-1600), queimado como herege no século XVI por não abrir mão de suas ideias? O que ocorreu com Bruno simboliza a perseguição inerente ao verdadeiro pensador. 

No mundo hodierno, o próprio intelectual tem dificuldade em se situar. Se alguma profissão não for contabilizada nas engrenagens utilitaristas não serve. Mas, em um tempo essencialmente plural, como o nosso, há espaço e necessidade para profissões de cunho mais teórico, tão desvalorizada. 

O que vem ocorrendo, no entanto, é a própria entrega do intelectual dentro dessa engrenagem. Percebe-se uma necessidade que o homem de ideias tem de participar da vida ativa para se sentir útil, e tornar sua profissão mais “prática”. Em alguns países, como a França, por exemplo, o “engajamento” atual do intelectual depende de sua atuação em áreas governamentais ou do terceiro setor. Alguns se tornam políticos profissionais, enquanto outros criam ONGs a fim de terem voz ativa. 
No Brasil, não vem sendo diferente, muito pelo contrário. Enfatizado pela nossa falta de tradição no campo das ideias, o que vem ocorrendo é que o intelectual, de forma acrítica, aceita cargos burocráticos nos governos vigentes, o que lhe faz calar ante as calamidades ocorridas. Criam-se situações absurdas, pois o intelectual, preso a ideologias e governos, não tem coragem de explicitar os erros cometidos, calando com certa conveniência. 
Há intelectuais que, apesar de estarem presentes em veículos de comunicação de massa, acabam adequando seu discurso em prol daquilo que aparece como mais palatável para a opinião pública. Outros intelectuais, por sua vez, com necessidades de “mudar o mundo” se entregam ao pragmatismo vigente, ao ativismo pelo ativismo, o "militantismo cego”. 

segunda-feira, 24 de março de 2014

'Fado da Tristeza'


Música e arranjo de José Mário Branco, letra de Manuela de Freitas - do Álbum Ser Solid(t)ário  


Não cantes alegrias a fingir 
Se alguma dor existir 
A roer dentro da toca 
Deixa a tristeza sair 
Pois só se aprende a sorrir 
Com a verdade na boca

Quem canta uma alegria que não tem 
Não conta nada a ninguém 
Fala verdade a mentir 
Cada alegria que inventas 
Mata a verdade que tentas 
Pois e tentar a fingir

Não cantes alegrias de encomenda 
Que a vida não se remenda 
Com morte que não morreu 
Canta da cabeça aos pés 
Canta com aquilo que és 
Só podes dar o que é teu


quarta-feira, 19 de março de 2014

Educação, terra e sustentabilidade

Aí abaixo o registro de um livro que acaba de ser publicado, e que produzi em coautoria com um colega de Departamento/UFPB, o Prof. Antonio Alberto, além do contributo de vários outros colaboradores. Um agradecimento especial às acadêmicas Ana Maria Gomes da Silva e Roseane Benício Costa, bolsistas do projeto/CNPq de onde decorreu o livro, e que foram de um empenho exemplar durante a execução do projeto e, especificamente, na coleta de dados/levantamento de informações para viabilizar a produção. O texto que se segue é o constante da apresentação do livro. 



O presente livro é um dos produtos resultantes da efetivação do Projeto Formação de Agricultores Familiares na Perspectiva da Sustentabilidade Sócio-econômica e Ambiental, desenvolvido sob os auspícios do CNPq mediante recursos obtidos por via do Edital nº 58/2010, e cuja execução ocorreu entre dezembro de 2010 e janeiro de 2014.
Implementado no contexto da educação não-formal, o Projeto teve como propósito geral incentivar e fortalecer a produção agroecológica diversificada, proporcionando segurança alimentar, geração de renda e sustentabilidade econômica, social e ambiental para famílias do Vale do Mamanguape/PB, residentes nos assentamentos Novo Salvador, Jardim e Boa Esperança. Para tanto, objetivando alcançar o referido propósito, foram desenvolvidas ações como: a) promoção da formação continuada em agroecologia e desenvolvimento rural sustentável; b) incentivo ao trabalho coletivo e à gestão participativa no processo de produção; c) realização de intercâmbios de experiência entre as comunidades dos mencionados assentamentos, e com outras, no sentido de compartilhar práticas agroecológicas; d) estímulo ao uso de técnicas de manejo em sistema de produção agroecológica, a exemplo da utilização de tração animal, curva de nível, rotação e consórcio de culturas.
O livro divide-se em três partes. Na primeira, enfoca-se a história da luta pela terra no Vale do Mamanguape-PB, colocando-se em realce depoimentos de protagonistas desse processo[1] e o registro documental do mesmo. Na segunda, o foco incide sobre a resistência e a luta pela permanência na terra, especificamente, nos três assentamentos nos quais o Projeto foi desenvolvido (Novo Salvador, Jardim e Boa Esperança), buscando-se caminhos alternativos, ambientalmente sustentáveis, para a produção local.  Na última parte, através de três trabalhos com autoria individual, realiza-se uma reflexão analítica a respeito de temas centrais do Projeto, como Agroecologia, Educação Popular e Educação do Campo. No todo, o fio condutor que garante unidade à obra consiste exatamente nessa busca de articulação entre a dimensão teórica e a dimensão prática.   
Trata-se de um trabalho que procura corporificar uma abordagem inter/transdisciplinar, ou seja, que não fique adstrita a um enfoque disciplinar específico. É produzido de um modo que dialoga entre disciplinas diferentes e, por vezes, transcende-as, dissolvendo-as umas nas outras. De qualquer forma, na primeira e segunda partes, há uma considerável presença de “aspectos” que, em análise mais sistemática/problematizada, podem evidenciar um realce acentuado da história social[2], se ela for vista sob a ótica de dois significados que convencionalmente lhe têm sido atribuídos. Quais sejam: a história das classes populares/dos seus movimentos (‘sociais’) e a ligação do ‘social’ com a economia[3]
Isso é tanto mais assim quando se considera que, como assinalou Carlos Silva, em seu clássico estudo sobre os camponeses, a economia campesina corresponde ao modo mais antigo, conhecido na história, de se produzir, como uma das variantes da forma doméstica de produção[4]. Disso resulta que - tomando como critérios as técnicas de cultivo, a maneira de apropriação da terra e o lugar do campesinato nas diferentes fases do desenvolvimento social - é possível apresentar uma categorização que, historicamente, demonstra a diversidade e fecundidade da vida camponesa, consubstanciada em uma tripla signficação. Isto é: uma camada diferenciada de ‘protocamponeses’ em sociedades nômades e tribais; o grupo de colonos e rendeiros agrícolas nos modos de produção escravista e feudal; e os camponeses atuais que, mesmo sob o capitalismo, empreendem formas de produção diferenciadas das deste, como as formas comunitárias.
Portanto, o presente livro, nascendo a partir de um contexto local do estado da Paraíba (o Vale do Mamanguape), vem oferecer testemunho desse  histórico e alternativo jeito de ser camponês. Que, buscando transformar sonhos em realidade, resiste e insiste em caminhar. Afinal, como, literariamente, afirma  Guimarães Rosa[5], “o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia”.   


[1] - Os depoimentos foram coletados/transcritos procurando-se garantir fidelidade ao conteúdo das falas.

[2] - Também poder-se-ia apontar a presença da história oral, mas o estatuto da história social lhe subsume. 

[3] Cf. HOBSBAWM, Eric. Sobre história.  Tradução: Cid Knipel Moreira.  1 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1998 (especialmente, o sexto capítulo - Da história social à história da sociedade, p. 83-105).  Um terceiro significado atribuído à história social também é referido por Hobsbawm, e designa uma diversidade de atividades humanas, tais como usoscostumes e cotidiano. Trata-se de uma perspectiva com inegável fronteira e enlaçamento sociológico.

[4] - Cf. SILVA, Manuel Carlos. Resistir e adaptar-se: constrangimentos e estratégias camponesas no Noroeste de Portugal.  Porto: Edições Afrontamento, 1998 (sobretudo, o segundo capítulo –Conservadorismo e racionalidade campesina: que modelos?, p. 41-67).

[5] - ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988, p. 52.  

sexta-feira, 14 de março de 2014

Felicidade: exercício da razão, da virtude e da prudência

Há um axioma oriental que diz que, 'a certa altura da vida, se abre mão do estado de feliz para se chegar à felicidade'. Talvez a metáfora não seja de fácil compreensão. Talvez. Contudo, uma volta aos clássicos do pensamento ocidental pode lançar lume sobre a questão. Trazendo Aristóteles à cena, o Prof. Michel Aires Souza, no curto, mas significativo, texto abaixo trata do assunto. 


Aristóteles: 'a felicidade como sabedoria prática' 
Por Michel Aires Sousa 

Aristóteles (384-322 a.C) nasceu em Estagira (Macedônia). Seu pai era médico do rei Felipe da Macedônia. É considerado juntamente com Sócrates e Platão um dos mais influentes filósofos gregos do mundo ocidental.  Foi aluno de Platão e educou Alexandre, o Grande. Criou o pensamento lógico e a biologia como ciência.  “Em suas obras sobre a natureza, Aristóteles tentou descobrir uma hierarquia de classes e espécies (…). Ele estava convencido de que a natureza tinha uma finalidade e que cada traço específico de um animal existia para cumprir uma determinada função”. (Strathern, 1997, p.24).  Dessa forma, Aristóteles foi o primeiro filósofo a valorizar a observação e a experiência em seus estudos e por isso pode ser considerado o pai do  método científico. Aos 17 anos foi para Atenas, o maior centro filosófico e artístico de toda antiguidade, matriculou-se na escola de Platão e lá permaneceu por vinte anos, até 347 a.C. Após a morte de seu mestre fundou sua própria escola, o Liceu. Ao contrário da Academia, que valorizava o pensamento teórico, o Liceu privilegiava as ciências naturais. Dirigiu o liceu até 324 a.C. Com a morte de Alexandre surgiram sentimentos xenófobos antimacedônios em Atenas, sentindo-se ameaçado Aristóteles fugiu afirmando não permitir que a cidade cometesse um segundo crime contra a filosofia, assim como cometerá com Sócrates. Apesar de sua escola ter privilegiados as ciências naturais Aristóteles também pensou os problemas políticos e sociais de sua época, assim como se debruçou sobre os problemas éticos e morais.  Em seu livro “Ética e Nicomaco” Aristóteles pensou profundamente sobre a felicidade humana. 
       Para Aristóteles a felicidade não está ligada aos prazeres ou as riquezas, mas a atividade prática da razão. Em sua opinião,  a capacidade de pensar é o que há de melhor no ser humano, uma vez que a razão é nosso melhor guia e dirigente natural.   Se o que caracteriza o homem é o pensar, então esta é sua maior virtude e, portanto, reside nela a felicidade humana.  “Aristóteles, fiel aos princípios de sua filosofia especulativa, e após ter feito uma análise e um estudo da psicologia humana, verifica que em todos os seus atos o homem se orienta necessariamente pela idéia de bem e de felicidade e que nenhum dos bens comumente procurados (a honra, a riqueza, o prazer) preenche esse ideal de felicidade. Daí a sua conclusão: primeiro, a felicidade humana deverá consistir numa atividade, pois o ato é superior a potência; segundo, deverá ser uma atividade relacionada com a faculdade humana mais perfeita que é a inteligência (…)”. (Costa,1993, p.67) 
        Em seu livro “Ética e Nicômaco”  Aristóteles mostra-nos que os homens se tornam o que são pelo hábito. Os homens se tornam bons engenheiros construindo, e se tornam músicos tocando, da mesma forma um homem torna-se justo praticando atos justos e mal praticando atos maus. Um homem torna-se um bom ou mau músico por tocar bem ou mal. Um escritor torna-se um bom ou mau escritor por escrever bem ou mal. Assim como um mau músico não tem o hábito de tocar, também o mau escritor não tem o hábito de pensar e escrever.   Dessa forma para se tocar música ou escrever bem é necessária a excelência, é necessário o engajamento, é necessário o hábito. A pratica continua de uma atividade ou de um comportamento nos possibilita internalizar aquele hábito. Somente a prática leva a excelência. Esse raciocínio serve para todas as atitudes e atividades humanas. Pelo hábito de sentir receio ou confiança tornamo-nos covardes ou corajosos. O mesmo se aplica aos desejos e a raiva, por se comportarem da mesma forma e do mesmo modo em todas as circunstâncias algumas pessoas tornam-se moderadas e amáveis, outras se tornam concupiscentes ou irascíveis. É por isto que devemos fazer uso da razão em nossas escolhas e atividades. Devemos sempre desenvolver nossas atitudes e atividades de uma maneira racional.          
       A felicidade para Aristóteles corresponde ao hábito continuado da prática da virtude e da prudência. Por sua própria natureza os homens buscam o bem e a felicidade, mas esta busca só pode ser alcançada pela virtude. A virtude é entendida como Aretê – excelência. É somente através do nosso caráter que atingimos a excelência. A boa conduta, a força do espírito, a força da vontade guiada pela razão nos leva à excelência. Dessa forma, a felicidade está ligada a uma sabedoria prática, a de saber fazer escolhas racionais na vida. É feliz aquele que escolhe o que é mais adequado para si. 
        A razão é a faculdade que analisa, pondera, julga, discerne. Ela nos permite  distinguir o que é bom ou mau,  a distinguir os vícios das virtudes. Ela  nos permite fazer escolhas pertinentes para nossa felicidade. Por exemplo, a temeridade é um vício por excesso, a covardia é um vício por falta; o meio termo é a coragem, que é uma virtude. O orgulho é um vício por excesso,  a humildade um vício por falta; o meio termo é a veracidade, que também é uma virtude. A inveja é um vício por excesso, a malevolência é um vício por falta; o meio termo é a justa indignação. Para Aristóteles toda escolha exige uma mediania, um equilíbrio entre o excesso e a falta.  Na vida não podemos ser imprudentes e impulsivos se arriscando em situações perigosas. Por outro lado,  também não podemos ser covardes e ter medo de tudo deixando que o medo nos domine. É necessário o meio termo entre esses dois sentimentos, devemos enfrentar os medos e perigos sabendo agir com bom senso. O mesmo raciocínio serve para alimentação, não podemos comer muito para passar mal do estômago, assim como não podemos evitar comer, pois também vamos adoecer. Devemos comer com moderação. Por esta ótica, também podemos pensar os sentimentos.  Na vida não podemos ser vaidosos preocupando-nos apenas com nossas qualidades, satisfazendo sempre o nosso ego. Por outro lado, também não podemos ser muito modestos,  achando que somos inferiores. É necessário auto-estima, sabendo reconhecer através da razão nossos defeitos e nossas qualidades. Para Aristóteles, portanto,  devemos sempre escolher o meio termo, sendo moderados em tudo que fazemos na vida. Somente assim atingiremos o bem e a felicidade.    

Bibliografia
Aristóteles. Ética a Nicômaco. Edipro, São Paulo, 2007.
Costa, José S. Tomás de Aquino: a razão a serviço da fé. São Paulo: Moderna, 1993
Stratheer, Paul. Aristóteles em 90 minutos.  Rio de janeiro: Jorge Zahar, 1997.
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Fonte: http://filosofonet.wordpress.com/2011/07/02/aristoteles-a-felicidade-como-sabedoria-pratica/
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sábado, 8 de março de 2014

A Educação na 'Praça Pública': Entre os Lugares-comuns e os Palpites

Por Ivonaldo Leite

“Nem todos podem falar com perícia, com a fundamentação necessária, sobre a educação, e não se pode desenvolver ciência com um vocabulário incapaz de exprimir os fenômenos do campo sobre o qual ela incide. Pelo contrário, falar de uma maneira informada sobre a educação é tão difícil como falar da construção de uma ponte. Claro que isto não significa que não tenhamos o direito, na nossa vida privada, de falar sobre a educação, sobre a educação dos nossos filhos, por exemplo. Claro que temos este direito, mas com o direito vem o dever - e certamente não devemos falar publicamente sobre a educação sem tomar em conta o que a pesquisa científica e a experiência pedagógica nos podem dizer sobre este campo do saber”.
Com essas palavras, o saudoso Stephen Stoer, especialista luso-britânico britânico da sociologia da educação, chamava a atenção, pouco antes do seu falecimento, para algo inusitado: o fato de, a partir de lugares-comuns, proliferarem discursos palpiteiros sobre educação, em função de esta se encontrar na ‘praça pública’. O mais singular ainda, assinalava o teórico, é que, pretensiosamente, por vezes, os palpites são pronunciados com uma retórica supostamente científica – registrado-se, contudo, o paradoxo de os seus autores não participarem da comunidade dos pesquisadores em educação e, assim, não terem conhecimento do mapa conceitual/vocabular que medeia o diálogo no interior da mesma. Contudo, os 'palpiteiros', sem conhecer a realidade das escolas, não se furtam até de dizer como os professores devem fazer o seu trabalho. Haja pachorra!
Um exemplo paradigmático da inconsistência dos discursos que, mesmo sem terem estatuto fincado na pesquisa educacional, prescrevem procedimentos educativos diz respeito à postura que, tendo como referência a escola da antiga classe média (a escola de um tempo passado), propõe receitas que, no mínimo, são defasadas temporalmente. É uma situação tal qual como se alguém tivesse tomado um trem entre os anos 1950/1960, tivesse adormecido, sido trocado de trem, e, ao acordar nos dias de hoje, não se desse conta que o trem não é o mesmo, os passageiros não são os mesmos e até companhia transportadora é outra.  Tradução (simplificada) da metáfora: os alunos e a escola de hoje não são os mesmos do passado, pois, por exemplo, os filhos das classes populares chegaram, enfim, à instituição escolar (básica e superior). Trata-se da ascensão da escola de massas, ou, também poder-se-á dizer, da “universalização” da educação escolar, superando-se o tempo em que ela era restrita a uma minoria. Isto já para não se falar das reconfigurações que, em função dos fenômenos contemporâneos, envolvem, por exemplo, a socialização primária e a socialização secundária, bem como a própria família.
O mais paradoxal ainda, para não dizer deprimente, é constatarmos que agentes educativos, como professores e gestores (de universidades, inclusive), por vezes, abordam a educação beirando o mais rasteiro senso comum. Já para não falarmos aqui, digamos, do comportamento pouco edificante desses agentes no exercício do seu métier.
Mas, já que em meio à algazarra dos palpiteiros nos encontramos, façamos uma concessão. Que o fato de a educação se encontrar em ‘praça pública’ possa servir a um aggiornamento roussereano, para se debater a cidade educativa. O que não é pertinente, convenhamos, é ela se tornar prisioneira dos lugares-comuns e das opiniões de ocasião. Ao sabor dos achismos. Para que a praça pública passe a ser o lugar de debate sobre a cidade educativa faz-se mister, contudo, que a comunidade de pesquisadores em educação mostre serviço. Dela requer-se  pesquisa disciplinada, rigor científico e criatividade analítica.

Só assim poder-se-á ir além dos discursos infestados de palpites e lugares-comuns sobre a educação. Retórica esquentada a cada momento. Trata-se, em suma, de evitar, como dizem os ingleses, as half-baked truths (“verdades meio-cozinhadas”), bem como de descartar as ‘idéias fora de lugar’.