domingo, 29 de dezembro de 2013

'Onde o Ano Novo cochila e espera desde sempre'

Mais uma postagem que, vamos lá, pode ser inscrita na dialética do Feliz Ano Velho-Novo. Desta feita, por via da pena de Carlos Drummond de Andrade, em um texto intitulado Receita de Ano Novo.  

drummond
Drummond: a espera e o Ano Novo onde ele sempre esteve

Para você ganhar belíssimo Ano Novo 
cor do arco-íris, ou da cor da sua paz, 
Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido 
(mal vivido talvez ou sem sentido) 
para você ganhar um ano 
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras, 
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser; 
novo 
até no coração das coisas menos percebidas 
(a começar pelo seu interior) 
novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota, 
mas com ele se come, se passeia, 
se ama, se compreende, se trabalha, 
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita, 
não precisa expedir nem receber mensagens 
(planta recebe mensagens? 
passa telegramas?) 

Não precisa 
fazer lista de boas intenções 
para arquivá-las na gaveta. 
Não precisa chorar arrependido 
pelas besteiras consumadas 
nem parvamente acreditar 
que por decreto de esperança 
a partir de janeiro as coisas mudem 
e seja tudo claridade, recompensa, 
justiça entre os homens e as nações, 
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal, 
direitos respeitados, começando 
pelo direito augusto de viver. 

Para ganhar um Ano Novo 
que mereça este nome, 
você, meu caro, tem de merecê-lo, 
tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil, 
mas tente, experimente, consciente. 
É dentro de você que o Ano Novo 
cochila e espera desde sempre.

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sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Dialética do Feliz Ano Velho... e Novo!


O texto abaixo é da lavra de Antonio Ozaí da Silva, professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Maringá/PR e Editor da interessantíssima Revista Espaço Acadêmico. É um texto que, como diria Leont Etiel, 'subscrevo com todas as tintas’. Tanto assim o é que, por minha conta, intitulo esta postagem como Dialética do Feliz Ano Velho... e Novo! (o 'dialética do’ é um acréscimo ao título original).  

Relógios derretidos: o passar do tempo no surrealismo de Salvador Dalí 

Por Antonio Ozaí da Silva 

“Matamos o tempo; o tempo nos enterra”, sentenciou Machado de Assis em Memórias Póstumas de Brás Cubas. O tempo passa, o tempo nos mata. Como afirmou o poeta, “O tempo não pára”. Mas o ser humano, em sua sabedoria quase divina, considerou mais apropriado convencionar que, em certos períodos do ciclo da vida, o tempo passado, passou. C’ est fini! Recomeça um novo tempo, o novo ano.
O calendário é uma invenção humana. Não obstante, em especial neste período, agimos como se o tempo fosse naturalmente seccionado em dias, meses, anos… Fez-se noite, fez-se o dia e os instrumentos para contá-los. O tempo, contado e calculado, surge, então, como obra da natureza ou de uma entidade sobrenatural.
Terminamos por aceitar apenas em parte que “o tempo não pára”. Sim, sabemos que o tempo nos consome, mas é precisamente por sabê-lo que precisamos estabelecer uma pausa e considerar que uma era terminou (o ano velho) e recomeçou outra (o ano novo). Precisamos acreditar. Alimentamos a ilusão do eterno recomeço – até que a morte nos alcance.
É esta necessidade que nos impele a romper os diques da razão e a dar vazão aos sentimentos, emoções e tudo o que significa comemorar o ANO NOVO. Ainda que a razão nos grite que o tempo segue inexoravelmente a sua marcha, agimos e sentimos como se realmente iniciássemos um novo período em nossas vidas. Muitas vezes, procedemos até mesmo como se enterrássemos o “eu” pertinente ao “ano velho”, como se este fosse “outro eu” e não aquele que somos na embriaguez da festança. E por vários dias, mesmo após a ressaca, sinceramente acreditamos que estamos numa nova fase da vida. Depois, a rotina enfraquece esta sensação e então o ano se torna longo e cansativo. Torna-se velho antes que termine. E, em nosso cansaço, ansiamos por mais um ano novo. E tudo se repete…
Porém, em qualquer tempo, o “outro eu”, que gostaríamos de abandonar no “ano passado”, teima em se fazer presente neste ano. Ainda que não queiramos, também somos o resultado do passar do tempo. Não podemos esquecer a nós mesmos no tempo que passou, como se o anúncio do novo ano representasse uma espécie de acerto de contas. 
Mesmo assim, fazemos planos. Transmitimos nosso desejo aos amigos e aos que amamos e, especialmente a nós mesmos, que neste ano tudo será diferente. Desfazemos-nos de determinados objetos, procuramos dar termo às pendências e limpamos as gavetas, as reais e simbólicas. E ainda que tenhamos que carregar as dívidas, nos prometemos, e aos outros, que terão um tratamento diferenciado e que, neste ano, nos livraremos delas.
Fazemos vistas grossa à dialética da vida. Teimamos em cindir o tempo passado e presente e idealizamos o “ano novo” como o início de um tempo capaz de realizarmos o “eu” que almejamos. Na busca de forças para resistir às agruras que a realidade impõe, necessitamos ardentemente da sensação, ainda que por breve momento, de que superamos as misérias do tempo que passou. Mas estas nos perseguem e impregnam o nosso ser, o nosso tempo. Elas permanecem à espreita e se introduzem em nossas vidas a despeito dos nossos desejos e felicitações mútuas de um FELIZ ANO NOVO! As rupturas não ocorrem apenas pela vontade idealista e formalidades próprias desta fase. A nova realidade contém a velha… 
Contudo, nos lixamos para a dialética. É uma necessidade psicológica. Precisamos, ao menos, atenuar o sofrimento. São trincheiras mentais que nos ajudam a suportar a realidade. Construímos esta noção do tempo como um anteparo à angustia do viver. É-nos difícil admitir que o “ano novo” indica apenas que o ciclo da vida se aproxima do seu desfecho. A natureza tem o seu tempo, e este, este sim, não pára. Ele passa e nos enterra…
Feliz Ano Velho… e Novo! 
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Fonte: http://antoniozai.wordpress.com/2008/01/05/feliz-ano-velho-e-novo/


sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Sentidos para o Natal

Os cumprimentos natalinos aos que me têm dado a honra de visitar este espaço, eu os manifesto por via da pena do português Ruy Belo (Obra Poética de Ruy Belo, vol 3, Lisboa: Editorial Presença, 1998) - mantendo o grafo lusitano do texto.

triste natal
'Janelas de Natal': quais sentidos?
Por Ruy Belo 

"Aí temos mais uma vez o Natal. Chega inexoravelmente, como o cair das folhas ou a velhice. Veio, éramos nós pequenos, vem hoje que a vida passou por nós, continuará a vir amanhã independentemente de nós. O que de nós depende é recebê-lo ou não. Transmitiram-no-lo os nossos pais, olhámo-lo originalmente com esses olhos lavados que trouxemos ao mundo, capazes ainda da grande intensidade de uma primeira visão. Que terá acontecido depois? Os dias repetiram-se, alguma coisa ruiu perto de nós. Continuará a vir o feriado nacional ou a festa da família, mas não há nada que nasça dentro de nós. E, no final do ano, nem teremos coragem de deitar pela janela fora as coisas velhas, porque ficaríamos nus. Foi Natal lá fora, nos outros, mas em nós ninguém nasceu. Talvez ombros alheios nos tenham contagiado uma certa animação por essas ruas engalanadas, um vago sentimentalismo ter-nos-á empurrado para dentro de um comboio, a caminho da família, da quinta ou da aldeia.
(...) Esqueceu-se que há uma realidade por trás de todo o movimento de gente que enche os comboios, sobrecarrega de trabalho o serviço dos Correios e requer a intervenção do Grémio dos Lojistas para decretar horas especiais de encerramento do comércio. Na alegria das crianças, no aconchego dos lares, no colorido das ruas, oculta-se um mesmo motivo a aproveitar por todo aquele que não quer virar o rosto às realidades.
(...) Mera questão de palavras? É possível que sim. No entanto, a gramática está longe de ser um instrumento tão inocente como poderia parecer à primeira vista. Por trás da gramática, está a lógica e para além dela a vida. A palavra é um bem perigoso, porque dá testemunho da realidade. É tarefa vã, mas possível e tentadora agir sobre os termos para deteriorar os conceitos e desviar a inteligência e a memória das situações que lhes deram origem.
(...) O Natal não é mera questão de coração ou de sentimento, embora também o seja. Não se trata de um mero “símbolo eterno”, como é possível que se diga nos jornais e depois o leitor tome como verdade. Não se celebra uma cerimónia, nem tão-pouco se cumpre um simples ritual. Oxalá as crianças pudessem ver nas pessoas crescidas que hoje somos a certeza de um ideal vivido. Haveremos de brincar com as crianças? 
Dá por vezes tristeza ver, entre outras coisas, os cartões de boas-festas que nos chegam. Trazem-nos as paisagens geladas do Norte, mostram-nos árvores que as nossas crianças nunca viram. Tudo isto por se imitar servilmente.
Fazer ver estas coisas equivale, parece-nos a nós, a pôr os pontos nos “is”. Urge, nestes tempos, aproximar a vida da verdade. Chamar as coisas pelo seu nome é garantir às crianças, que nesta quadra nos olham mais nos olhos, um mundo de amanhã melhor.

O espírito do Natal é este. Se o vivermos assim, ou se pelo menos tivermos o desejo sincero de examinar a forma como o temos vivido, o Natal não passará em vão. 

Tarso Genro e o enigma chinês

Por estes dias, estive debruçado sobre um trabalho de doutorado a ser defendido numa das universidades federais do Rio Grande do Sul. O foco da abordagem: uma política setorial do Governo Tarso Genro. De certo modo, a leitura do trabalho remeteu-me a outros tempos, quando Tarso e o seu irmão Adelmo produziam textos teórico-políticos. Para aqueles que, como eu, naqueles idos, acompanhavam as posições dos irmãos Genro, não constitui surpresa ver que, no governo, Tarso busque combinar, na adoção de políticas, reflexão teórica com "senso prático". Pode-se dizer de outro modo: mesmo no âmbito da esfera da intervenção, não abandona a perspectiva analítica na focagem da realidade. O que é algo um tanto raro, pois não combina com o pragmatismo político. Daí nem sempre o governador gaúcho ser bem compreendido. Mas isso não lhe acarreta demérito, tanto assim o é que já foi referido, no contexto europeu, como um dos melhores quadros políticos da América Latina. Ao lermos o artigo seu a seguir, sobre a China, não será difícil entender a razão de ele ser dessa forma reconhecido. 


Pequim em
Pequim: para onde vai a China?

Tarso Genro  

Compartilho, com este artigo, uma pequena reflexão sobre a Revolução Chinesa e seu estado atual, pois creio que ela é, ao mesmo tempo, a grande virada do século XXI e o “canto do cisne” de uma certa visão socialista, extraída mecanicamente, tanto  do marxismo economicista, como do idealismo voluntarista, que caracteriza algumas posições da esquerda socialista. Fica claro que estes comentários não pretendem transmitir nenhuma lição sobre o tema, nem impugnar linhas de abordagem já definidas dentro do espectro da esquerda sobre o assunto, mas manifestar uma opinião marginal sobre o tema para colaborar com um debate que será, creio eu, um dos mais importantes deste século.
A grave contradição entre instaurar relações de produção socialistas sem ter conhecido a revolução industrial, tendo que cumprir - com forças produtivas extremamente atrasadas - agendas de desenvolvimento e promoção social, muito além das possibilidades oferecidas pela técnica e pela ciência, pela consciência de classe e pelo contingente de trabalhadores envolvidos nestas tarefas,  é a base, na minha opinião, do drama chinês para o progresso e, ao mesmo tempo, a demonstração da força extraordinária de um povo que se ergueu da miséria e do atraso e está construindo um grande país. 

A China  será a grande potência econômica e militar do Século XXI, superando os grandes países colonizadores  e imperialistas do Ocidente industrializado, que deram as cartas ao mundo dos pobres nos últimos duzentos anos. Rússia, Estados Unidos, Inglaterra, talvez União Européia, estarão também no centro do tabuleiro mundial, olhando e interferindo  numa nova relação de forças para promover seus interesses. 

Assim como a crise americana atual interessa ao mundo, da mesma forma que o  keinesianismo interessou a todos, para responder à crise de 29, o destino da China interessa-nos, também, em função  de duas questões adicionais: sua crise ambiental e a originalidade do seu modelo de desenvolvimento. Eles condensam tanto os problemas originários do desenvolvimento capitalista típico, assim como os ambientais  de um desenvolvimento socialista tradicional, ambos baseados numa exploração irracional da naturalidade, seja para a aceleração da acumulação (privada ou estatal), seja para concentrar lucros ou reparti-los.

Se a China vai desenvolver alguma semelhança com um socialismo tipo “soviético”  - pensado por Lenin nos anos 20 do século passado - ou vai se encaminhar para uma espécie de “social-democracia” novo tipo, baseada na tradição milenar da centralização imperial chinesa, ainda é cedo para dizer. O que se pode afirmar, porém, é que a Revolução Cultural, iniciada nos anos 60, foi derrotada, e que a Revolução Nacional Popular, vitoriosa nos anos 50, não inaugurou qualquer estrada reta em direção ao que se pensava ser o socialismo, seja nos moldes do marxismo-leninismo tipo soviético, seja com fundamento na dogmática da Revolução Cultural.

Se compararmos o que está acontecendo na China nos dias de hoje, com os processos históricos mais próximos - em termos de desenvolvimento industrial e organização estatal moderna - como a Revolução Industrial Inglesa, a colonização interna dos EEUU e a sua modernização industrial como sucedâneo da dominação imperialista, o grande salto industrial da União Soviética a partir dos anos 30, chegaremos à conclusão que a formação da China atual  - independentemente dos nossos juízos sobre as formas mais ou menos humanistas como estes processos se realizaram - é o mais formidável salto que um governo e um povo realizaram para melhorar a vida das pessoas e combater a miséria e a fome.

Como diz Edward Said, “o mundo, hoje, não existe como espetáculo sobre o qual possamos alimentar pessimismo ou otimismo, sobre o qual nossos ‘textos’ possam ser interessantes ou maçantes. Todas essas atitudes supõem o exercício de poder e interesses”. O otimismo voluntarista espelhado na violência da Revolução Cultural Chinesa  (a revolução como estímulo moral para formação do homem novo desligado do passado e da tradição) e o pessimismo - de certa forma apologético - inspirado na “teoria da dependência”  (que na política torna-se defesa do desenvolvimento subordinado aos países centrais)  estão bloqueados.

De um lado, este “bloqueio” dá-se pela impossibilidade concreta da solidariedade entre os trabalhadores no plano internacional e, de outro, pela necessidade de que os países mais fortes - em termos econômicos e militares - disputem a melhor possibilidade para, na relação com países ricos em matérias primas e em terras, obter melhores condições para fortalecer-se perante os seus rivais militares e econômicos.

A impossibilidade da solidariedade “classista” nas lutas dos trabalhadores do mundo vem de que  a fragmentação no processo produtivo e a concorrência intra-classe  (entre os nacionais e  imigrantes),  impede programas comuns de luta contra as dominações internas e exacerba o corporativismo economicista.



Acresça-se a isso o  fato que os países que  ainda se mantém com a retórica do internacionalismo proletário vêem, na verdade, uma revolução nos países mais débeis  -supostamente amigos-  como uma instabilidade que pode bloquear “relações de cooperação”.

Os grandes movimentos anti-sistema da atual década, com sentido ainda que espontaneísta contra os poderes (sejam eles quais forem) vem dos jovens sub-empregados e desempregados, de uma pequena-burguesia ressentida por não poder fruir de maiores níveis de consumo, dos servidores públicos ainda com razoável nível de vida (comparados com os mais excluídos), vem  de setores libertários de certas frações de classe, sendo quase nula a ação anti-sistema dos trabalhadores “com carteira”, ou seja, daqueles que numa virada revolucionária tomariam conta não só da produção, mas do poder político.

Lembremos: na visão marxista e tradicional da revolução, a classe operária (ou os “trabalhadores”) sujeitos da revolução, passariam a dominar, tanto o Estado, como a impulsionar a dirigir a revolução na produção, para não mais trabalharem como escravos modernos do capital.  A esfinge chinesa nos indaga sobre tudo isso: de uma parte, é um mito que os trabalhadores chineses atuais são escravos do Estado ou tenham níveis de exploração mais duros do que a média dos países capitalistas de todo o mundo, assim como é um mito de que a “ditadura do partido” domina a vida de  um bilhão e trezentas mil pessoas, a menos que se aceite que estas pessoas são seres inferiores alienados pela propaganda e pela repressão.

O que existe na China é um regime autoritário, baseado num intercâmbio de interesses entre o Partido Comunista Chinês, que controla o aparato de Estado e exerce uma plena hegemonia cultural –em termos de valores, produção científica e artística-  e a ampla maioria do povo chinês,  cuja vida melhorou muito nos últimos trinta anos, após as reformas dirigidas pelo Presidente Teng Hsiau-ping.

A China nunca teve uma democracia em moldes ocidentais e, se é verdade que seu modelo não cabe ser replicado a partir dos valores democráticos (ocidentais-iluministas), também é verdade que o seu regime não se manteria sem um alto grau de consenso, inclusive privilegiadamente em  amplos setores das classes trabalhadoras. Se este regime manter-se-á, ou não, à longo prazo, dependerá dos maiores ou menores benefícios concretos que ele vai aportar na vida milhões de chineses  nas próximas décadas. Mas o que creio ser certo é que se na China for adotado, em algum momento, um regime ocidental capitalista típico, o país  vai é aumentar a miséria, o crime, exclusão e  a violência social.

Da tomada do poder em 1950,  até a Revolução Cultural na década de sessenta, a China lançou os fundamentos de uma Revolução Industrial Manufatureira com base numa exploração intensiva do campo. A partir desta base manufatureira, que se consolidou e ampliou com as reformas de  Deng na década de 80  - superados os desatinos voluntaristas  da guarda vermelha maoísta - exportando manufaturas aos bilhões e de baixo custo, a China acumulou reservas trilionárias. Este modelo se esgotou, não só pela resistência dos países importadores, como também pelas freqüentes violações às regras da OMC, após ter incluído na nova sociedade de classes trezentos milhões de chineses.

Passa a China, agora,  para uma nova etapa: disputar o comércio mundial com produtos de valor agregado mais nobres, associar-se com capitais locais nos países que tenham  regimes de cooperação de Estado para Estado, expandir suas empresas estatais e privadas para relocalizá-las  em outros territórios, com muita terra, água e energia. Esta nova etapa da nação e do Estado chinês é que pode servir de oportunidade para países como Brasil, a Índia, a África do Sul  e para os demais países que pretendam promover cooperações interdependentes sem submissão.

Essa cooperação só poderá ser consolidada tendo como interlocutores os BRICS, geridos  por governos legítimos em Estados democráticos fortes, aparelhados para planejar e induzir o  seu desenvolvimento econômico e social, com empresas privadas e públicas  de alta qualificação tecnológica e gerencial.

A China, como qualquer mega-país, não estabelecerá relações de cooperação que não atendam os seus interesses históricos e as necessidades sociais do seu povo ou que prejudiquem a sua vocação hegemônica. Compete a cada país defender e preservar, sem romantismos,  “seu poder e seus interesses” – como diz Edward Said - , transformando, pelos menos por agora,  a utopia longínqua de um mundo “irmão” baseado no socialismo, pela utopia concreta de uma soma de países interdependentes,  que preservem as melhores possibilidades para enfrentarem  -através de  cooperações negociadas soberanamente-  a miséria e a exclusão.

Em 8 de agosto de 1966 o “Pekin Informa” n.33, publicou a seguinte nota: “A luta levada a cabo pelo proletariado contra o pensamento, a cultura, os hábitos, os costumes antigos, transmitidos por todas  as classes exploradoras durante milênios, durará necessariamente um período extremamente longo. Assim, os grupos, comitês e congressos da revolução cultural, não devem ser organizações temporárias, mas organizações de massa permanentes, destinadas a atuar durante longo tempo.” 

Levada a sério esta visão  do PC chinês, naquela oportunidade, poder-se-ia concluir que os velhos hábitos e costumes antigos ganharam na China de Teng Hsiao-ping e que a contra-revolução venceu. Mas, se a contra-revolução venceu  e tirou da miséria trezentos milhões de chineses até os dias de hoje  e tirará mais duzentos milhões até o ano de 2023, não foi bom a contra-revolução ter vencido?  Ou, quem sabe, não era uma contra-revolução?   Os velhos, as crianças antes famintas, os jovens antes pobres e desempregados, as milhões de mães que não mais viram seus filhos se esvaírem na febre e na miséria são concretos.  Talvez uma boa resposta também venha deles. Para o futuro.
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A poesia de Rogaciano Leite: crepúsculo, carne e alma

Se vivo fosse, o advogado e poeta pernambucano Rogaciano Leite, autor de Carne e Alma,  teria completado, em 2013, noventa e três anos. Por razões diversas, desde cedo, a minha formação literária teve uma conexão com a obra de Rogaciano. A meu ver, uma dimensão breve dela pode ser apreendida no poema Visões do Crepúsculo. Abaixo, um curto realce no mesmo.

Rogaciano Leite: poesia viva, carne e alma 
(...)
O vento se espanta 
na curva da estrada 
Ferindo o silêncio do campo esquisito 
E as nuvens se espanam com leques de seda
A concha solene 
do azul infinito 

(...)
Recolhem-se as cousas 
no leito da noite 
Gozando a quietude das horas amenas...
E a selva segreda sagrados segredos 
Às sombras sozinhas 
que sonham... serenas!

terça-feira, 17 de dezembro de 2013

'A esperança é o único dever e a saudade é uma jaula'

Tal asserção é do jornalista (e também poeta) pernambucano Geneton de Moraes Neto, em Funeral das Brancas Nuvens (1970 e nada). Autor de, entre outros, Dossiê Moscou, Geneton mostra que não é só no campo do jornalismo que ele mostra a que veio. De certo modo, o seu construto faz-me lembrar do quadro Cavalaria Vermelha, de Kazimir Malevich. A conferir. 

Cavalaria Vermelha: anúncio e enigma 

Funeral das Brancas Nuvens (1970 e nada), por Genton de Moraes Neto 

Eu vos anuncio o funeral da década das ausências
1970 e nada
Boa noite, imperadores da desesperança!!
Boa noite, patrulhas de gás lacrimogênio!!
Boa noite, senhores tristes do poder!!
Boa noite, velhos irmãos de cabelos cortados!!
Boa noite, batalhões de choque!!

Boa noite.... Durma em paz, Tio Sam

Eu vos anuncio o funeral da década das Brancas Nuvens...
1970 e nada
Boa noite, Planalto Central do Brasil!!
Boa noite, mestres de moral e cívica!!
Boa noite, heróis de estátuas!!
Boa noite, loucos carcereiros sem rosto!!
Durmam sem medo de nossas garras...
Eu vos anuncio o funeral da década sem bandeiras...
1970 e nada

Boa noite.....
Sonhem agora com a Paz Celestial
Os anos 60 já vão longe, longe, longe
E todos os profetas erraram!!

As ruas de maio em Paris,
A Primavera de Praga,
As cordilheiras da América,
Os palcos de Woodstock,
São agora um retrato na parede!

1960 sonhos, 1960 sonhos mortos e 1970 e nada!

Então....
Boa noite imperadores da desesperança!
Toquem os sinos da aleluia! Nós estaremos ouvindo em algum lugar
Vistam a roupa de sábado, afinem o coro dos contentes,
Vocês sabem, o nosso grito ficará calado...

E aí...
Bom dia, John Lennon de quarenta anos...
Bom dia, poetas de todas as manhãs...
Bom dia, pássaro-azul da felicidade-geral, que voa longe de nós agora...

Olhem o nosso coração
Ele resiste
Porque os velhos sonhos passaram para sempre e as nossas mãos, vazias de bandeiras, vão reconstruir novas miragens.

A esperança é o único dever e a saudade é uma jaula.

Então,
Boa noite, imperadores da desesperança!
Boa noite, patrulhas de gás lacrimogênio!
Boa noite, velho Marx!
Boa noite, Profeta das Oliveiras!
Vocês foram crucificados!

Eu vos anuncio que nós não estamos plenamente mortos!
Eu vos anuncio
Que nós
Não estamos
Plenamente
Mortos!

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Trem Noturno para Lisboa: viagem ao encontro de si

No português d'além, seria Comboio Noturno para Lisboa. Por cá, Trem Noturno. Pouco importa. O fato é que está chegando às telas um filme (triller filosófico, alguém já disse) que tem despertado distintas posições da crítica. É a adaptação do livro homônimo do suíço Pascall Mercier. Vamos lá,  pitadas de existencialismo. Um solitário professor se encanta por um livro raro. Buscando os passos perdidos do seu autor, descobre um mundo de heroísmos e traições, onde a paixão amorosa não se diferencia da efervescência política. Abaixo, uma resenha. 

Cena de 'Trem noturno para Lisboa' (Foto: Divulgação)
O livro, o tem e Lisboa: ao encontro de si?
Por Léa Maria Arão Reis 

O marketing não descansa na operação incessante de adequar a cabeça do mundo ao consumo de massa, de qualquer produto, bom ou de má qualidade. Em geral, através de slogans até ridículos. Trem Noturno para Lisboa está sendo vendido no “mercado” como um thriller filosófico.
 O próprio realizador, o dinamarquês Bille August, já premiado com o Oscar de filme estrangeiro - Pelle, o conquistador - e duas vezes Palma de Cannes pela mesma produção e por Melhores intenções, batizou assim sua mais recente obra, ano passado, quando terminou as filmagens e perguntaram a ele de que se tratava esta adaptação do livro homônimo do suíço Pascal Mercier, professor de filosofia em Berlim, com mais de dois milhões de exemplares vendidos na Europa e chegando agora ao Brasil. Filme e livro em operação conjunta de venda e de marketing, destinada a faturar pesado no “mercado”.

 A bela Lisboa das mil arquiteturas, gótica, neomourisca, manuelina e pombalina, art nouveau, neoclássica, e por isto mesmo fora do tempo, é o belo cenário para a história do velho e desinteressante professor universitário de latim e grego da monótona cidade de Berna, na Suíça - Raimund Gregorius vivido pelo ator Jeremy Irons. Em um arroubo inexplicável, depois de viver um encontro inquietante no alvorecer de um frio dia de inverno, caminhando para dar uma aula, Gregorius larga tudo e embarca em um trem que o leva a Portugal. Busca viver emoções fortes e inéditas. Inicia assim uma “viagem ao encontro de si mesmo”, como diz um personagem, repisando o clichê. 

 A jornada o levará ao Portugal revivido de meio século atrás, fim da ditadura de Salazar e descrito em um livro, 'O Ourives das Palavras', de autoria de certo médico já morto, Amadeu de Almeida Prado, que por acaso lhe cai nas mãos e o perturba. 
O ator Jeremy Irons (dir.) em cena do filme 'Trem Noturno para Lisboa
Encontros imprevistos: trilha existencialista 
 Logo no começo do filme a epígrafe é a frase, permanente, do imperador filósofo romano Marco Aurélio, um dos mestres preferidos de Gregorius: “Pensamento e ação são uma coisa só”. Faltava ao velho professor incorporá-la à razão intelectual, o que vai ocorrendo ao longo do filme (e do livro) através dos encontros mantidos durante a viagem com personagens que conviveram com Prado. Através deles o protagonista desenha o mosaico da vida aventurosa do médico em que a traição é o eixo. 
 Trem noturno para Lisboa é bem feito, conta com bela fotografia, com um buquê de estrelas notáveis – além de Irons, Bruno Ganz, Charlotte Rampling, Lena Olin, Tom Courtnay, Christopher Lee que se misturam a jovens atores e atrizes mais ou menos competentes -, sua trilha musical é correta, a direção de arte excelente. Tudo se encaixa para resultar nesta coprodução internacional realizada com dinheiro alemão, suíço e português. 
 Assim como tantas outras, globalizadas e despersonalizadas, lambuzadas de charme e feitas para despertar, às vezes, leve inquietação nas grandes plateias. Fórmula perfeita para concorrer e ganhar prêmios que podem multiplicar o mega triunfo de August, autor de outros blockbusters, objetos culturais de estrondoso sucesso como Casa dos espíritos e Mandela: a luta.
No filme, que achata o argumento, o fim fica em aberto. O final do livro, ao contrário, é fechado e menos comercial. Mas a jogada é de mestre: manipula o desejo do espectador de comprar o livro e do leitor de assistir ao filme. Operação casada quase irresistível e onde todos ganham muito dinheiro.
 Trem noturno para Lisboa vai arrastar multidões. É cinema de entretenimento de fim de semana com certo bom gosto. Não chega ao mínimo do “não penso, não existo, só assisto”. Pode até provocar. Quem tem coragem de encerrar a existência medíocre, chutar a segunda-feira do dia seguinte e se lançar no risco da grande vida? Os existencialistas refletiram melhor sobre o assunto. Talvez Umberto Eco escrevesse também melhor – como aliás fez - para um thriller filosófico.
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sábado, 7 de dezembro de 2013

Curvas do tempo, curvas da História: melancolia e a 'partida de um gigante'

Passou quase despercebida a partida do Prof. Ciro Flomarion Cardoso. A 'partida de um gigante'. Historiador que dignificou a história como ciência social de primeira grandeza; com vasta obra, Ciro Flomarion foi daqueles intelectuais um pouco raros nos dias de hoje. Homem de grande erudição, era músico, e os seus pais queriam que ele fizesse medicina - a sua opção, contudo, foi por História. Dedicou-se a domínios diversos como metodologia da história, estudos da Antiguidade (designadamente egiptologia) e, nos últimos tempos, vinha-se ocupando de métodos semióticos. O seu livro Os Métodos da História, com Hector Pérez Bringnoli, foi central na formação de diversas gerações interessadas em ancorar a abordagem histórica nos venturosos portos da ciência social.  De quebra, ainda escreveu A Ficção Científica, Imaginário do Século XX: Introdução ao Gênero. O Prof. Edgard Leite (UFRJ), que foi orientando de Ciro Flomarion, reconhecendo publicamente a importância que ele teve em sua formação, realça algo sobre a História que, da minha parte, é-me uma divisa para lembrar o velho mestre. Reproduzo a assertiva a seguir. 


"O que me atrai em História é o mistério que está contido na passagem interminável dos instantes e a própria natureza enigmática do tempo... nunca deixei de ter o sentimento de que o mistério que eu procuro resolver na minha escolha não pode realmente ser resolvido, embora, por outro lado, acredito que eu posso, sim, aproximar-me dele infinitamente, o que me parece bastante satisfatório.
Assim, não tenho um tema específico, mas um problema de ordem  filosófica ou metafísica - que passou a estar presente em todos os meus estudos de uma forma ou de outra...
Para mim, no entanto, o que importa nas minhas pesquisas é a proximidade quase física do mistério,  que está contido em tudo que os homens fazem, em todas as suas esferas da atuação e existência: o mistério da morte, por exemplo, ou o enigma do por que existimos e a grande turbulência que tudo isso causa nas nossas atitudes e existências."
                                 

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

Vida acadêmica e publicações: em busca de seriedade e qualidade

Volto a repisar o assunto. A questão da seriedade e da qualidade no contexto acadêmico. Alguém já disse que, no galope que as coisas estão indo, num raio de vinte anos, a nossa pós-graduação estará vivendo uma situação calamitosa. Mas não só. Outro capítulo dessa história é o das produções/publicações. Além das "produções" que nada acrescentam, agora temos o fenômeno da 'despublicação' - reflexo de erros e fraudes. O que é a 'despublicação'? Abaixo, uma reportagem da Folha de São Paulo a respeito. 

Cresce número de artigos científicos 'despublicados' por fraude ou erro

REINALDO JOSÉ LOPES
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA


Nunca tantos artigos científicos foram publicados e nunca foi tão fácil ter acesso a eles de graça. São notícias aparentemente ótimas, mas dois levantamentos recentes indicam que o efeito colateral desses avanços é uma explosão no número de estudos fraudados, plagiados ou simplesmente muito ruins.
Uma das maneiras de medir isso é a análise das "retratações", nome dado às pesquisas "despublicadas" por problemas éticos ou erros.
Em artigo na revista científica "PLoS ONE", pesquisadores nos EUA apontam que, de 2003 a 2012, o número de artigos retratados (1.333 numa das principais bases de dados do setor, a PubMed) foi quase o dobro do que se viu entre 1973 e 2002 (só 714).
Dos anos 1970 para cá, a produção científica cadastrada na PubMed praticamente quadruplicou, mas os artigos "retratados" cresceram em ritmo ainda mais forte, chegando perto de ficar seis vezes mais comuns.
O outro levantamento foi feito de forma mais rocambolesca. O jornalista americano John Bohannon, da "Science" (um dos periódicos científicos mais respeitados do mundo), enviou diversas versões de um estudo fajuto para mais de 300 revistas de acesso livre (que não cobram pela leitura de seus artigos).
Resultado: metade delas topou publicar a pseudopesquisa. Entre essas revistas está uma publicação brasileira, a "Genetics and Molecular Research", cujo editor-chefe diz ter havido erro de interpretação.

FÓRMULA
Os estudos enviados por Bohannon seguiam uma fórmula simples, mas crível: a molécula X, extraída de um líquen Y, inibe o crescimento de células de câncer do tipo Z (um programa de computador foi usado para criar variações desse tema).
O objetivo do "trote", segundo a "Science", foi mostrar que existe um submundo de revistas científicas de acesso livre "predatórias". Em geral sediadas fora da Europa e dos EUA, essas revistas usariam o pretexto do acesso livre para ganhar dinheiro. Nesse tipo de publicação, o cientista paga os custos de impressão do artigo, diferentemente das revistas tradicionais, que cobram assinatura dos leitores.
Além de identificar o crescimento dos artigos "despublicados", a pesquisa na "PLoS ONE", liderada pelo neurofisiologista americano Grant Steen, identificou outras tendências significativas.
O perfil de quem tem artigos retratados mudou. Até os anos 1990, a maioria era gente que fazia isso várias vezes, espécie de mentirosos contumazes. Hoje, mais de 60% das "retratações" está ligada a pesquisadores que nunca tinham sofrido isso antes.
"Cientistas mais jovens podem não ter sido integrados corretamente à maneira como a ciência funciona, seja por falta de mentores cuidadosos, seja por excesso de pressão para publicar. Mas não conseguiria provar essa ideia", ressalta ele.
Um ponto que pode ser positivo, segundo ele, é que o tempo para que um artigo seja retratado encolheu: de mais de quatro anos antes de 2002 para dois anos hoje.
"Isso pode ser visto como um sinal de saúde do sistema científico. Temos de esperar para ver se a taxa de retratações vai aumentar mais. Se isso acontecer, é o caso de ficarmos mais preocupados."
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