quinta-feira, 24 de maio de 2012

Sociologia da Doença e da Medicina

Há já um bom tempo, sobretudo no contexto internacional, o campo da saúde vem sendo objeto de abordagem das ciências humanas, designadamente da História, da Sociologia e da Antropologia. E, de certo modo, como reflexo disso, atualmente verifica-se a ascensão dos Cursos de Saúde Coletiva no Brasil (alô, meu amigo Paulo Santana!). Da minha parte, esta é uma incursão fecunda, acentuada no tempo em que trabalhei na UFPE. Como "entrada" nesta perspectiva, abaixo, reproduzo uma resenha do Sociologia da Doença e da Medicina, de Philippe Adam e Claudine Herzlich.



A sociologia da saúde: análise de um manual


Marcelo E. P. Castellanos (Doutor em Saúde Coletiva, UFBA) 

Everardo Duarte Nunes (Doutor em Ciência; professor associado de Ciências Sociais em Saúde e Saúde Coletiva do Departamento de Medicina Preventiva e Social da Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP)



ADAM, Philippe; HERZLICH, Claudine. 
Sociologia da Doença e da Medicina.
Tradução de Laureano Pelegrin. Bauru: EDUSC, 2001. 144 p.
2 Na página 22 podemos ler: "[...] em 1882 descobre–se o vírus causador [da tuberculose], o bacilo de Koch...".



"Este livro foi escrito [para] [...] apresentar os procedimentos, conceitos e principais conquistas da análise sociológica no campo da doença e da medicina. Como indicamos no início do livro, a reflexão ignorou essas realidades por longo tempo: a escola e a fábrica foram objeto de estudo dos sociólogos muito antes do hospital e do consultório médico [...] [porém] o estudo sociológico da medicina é uma das maneiras mais certas de se compreender o impacto que o desenvolvimento científico exerce sobre as sociedades modernas" (ADAM e HERZLICH, Prefácio).
Como indicam os autores1 em seu prefácio à edição brasileira, essa publicação busca, antes de mais nada, apresentar a estudantes do campo da saúde e das ciências sociais algumas das principais contribuições elaboradas pela reflexão sociológica francesa e anglo–saxã sobre a construção/determinação social da doença e da medicina. A doença e a medicina são sociologicamente tomadas nesse livro enquanto objetos próprios de um campo de práticas elaboradas tanto nas relações face a face (em que melhor visualizamos as relações existentes entre o profissional e o usuário dos serviços de saúde), quanto no conjunto maior de relações estruturais que compõem, ao mesmo tempo, uma realidade "dada" e "em transformação", relativa aos fenômenos de saúde e doença presentes na sociedade.
Apresentando–se como um manual, o livro possui, de antemão, o mérito de ser escrito em linguagem simples e acessível ao estudante ou profissional que busca um primeiro contato com esse tipo de reflexão, assinalando que a sociologia tomou o campo da saúde como um território fértil e mesmo crucial para compreendermos melhor os caminhos que a sociedade moderna construiu a partir de um crescente processo de racionalização da vida, de disciplinarização dos corpos e de burocratização dos fazeres (assistência).
O olhar presente nos capítulos de Sociologia da doença e da medicina é marcado, inicialmente, por uma visão panorâmica sobre a história das doenças e das práticas em saúde, nos últimos séculos, identificando a construção de uma perspectiva racionalista do processo saúde–doença. Nos capítulos seguintes, trata de questões específicas da assistência, onde são problematizadas assimilações e resistências desse movimento de tecnificação dos saberes, já dentro de um panorama mais interno às práticas de saúde (com especial atenção dada à profissão médica e à instituição hospitalar).
Para tal, são recuperados alguns dos principais conceitos de autores que, especialmente a partir do Pós–Segunda Guerra Mundial, produzem trabalhos de grande relevância teórica e empírica em um contexto institucional de forte questionamento dos alcances efetivos apresentados pelos sistemas de proteção social e pelas técnicas terapêuticas então existentes. Menciona–se explicitamente no referido prefácio que as análises apresentadas foram elaboradas a partir das realidades institucionais francesa, inglesa e norte–americana, e os próprios autores levantam a questão da necessidade de ampliar essas análises com material de outros países. Assim, se a discussão se apóia fortemente na produção acadêmica francesa, os autores incorporam ainda uma importante literatura inglesa e norte–americana, com especial destaque à produção de Talcott Parsons.
São apresentados importantes questionamentos e formulações desse sociólogo norte–americano que, a partir dos anos 50, propõe conceitos extremamente importantes para compreendermos a estruturação das relações sociais da assistência em saúde, tais como papel de doente, papel de médico, carreira do doente, dentre outros que compreendem a doença como uma ruptura da ordem social (desvio), e seu gerenciamento assistencial como uma busca ativa pela reinstauração e manutenção da ordem perdida (normalidade).
Os autores resumem os grandes temas abordados pela sociologia da saúde e pela psicologia social no tocante à abordagem dos limites existentes entre o orgânico (biológico) e o social (sociológico), assim como entre a perspectiva técnica (científica) e a perspectiva leiga (senso comum) presentes na construção social do adoecimento e da assistência em saúde. Assim, os capítulos iniciais buscam trabalhar as relações existentes entre "doença e história" e entre "doença e sociedade", apontando para a construção social da consciência coletivasobre as doenças, tomadas enquanto um objeto de conhecimento tangível pela ação humana. Utilizando este conceito muito caro e tradicional da literatura sociológica francesa, os autores não deixam de iniciar suas considerações apoiados nos trabalhos clássicos elaborados por E. Durkheim e M. Mauss sobre a autonomia relativa da vida simbólica na sociedade.
Adam e Herzlich procuram mostrar como as grandes epidemias que assolaram a humanidade nos últimos séculos foram identificadas de diferentes maneiras ao longo da história da Humanidade, possuindo uma realidade específica em cada momento histórico, de acordo com a forma como colocaram em questão diversas visões, atitudes e valores referidos à norma social vigente. A definição do normal e do patológico enquanto uma norma social, conforme proposto por Canguilhem, orienta em grande parte essas primeiras páginas.
Tenta–se aqui, também, fornecer ao leitor as primeiras evidências do caráter social da determinação da natureza e distribuição da doença (enquanto um fenômeno concreto e um conceito abstrato), situando–as como decorrência da transição demográfica vivida pela Humanidade a partir do século XVIII, associado ao controle das doenças infecciosas e melhoria das condições sanitárias. Enquanto a tuberculose é o exemplo da doença que "aparece como espaço intermediário entre as epidemias do passado e as moléstias atuais" (p. 25), substituindo as grandes endemias no imaginário coletivo, o câncer, embora não sendo uma doença recente, começa a ser estudado de forma mais precisa no começo do século XX e passa a ser visto como uma ameaça à sociedade. Como lembram os autores, "o surgimento da AIDS, no princípio da década de 1980, desfaz a oposição entre as epidemias do passado e doenças modernas", como exemplo do reaparecimento de uma doença transmissível, de rápida progressão, epidêmica e ameaçando globalmente a sociedade. Abordam a questão da AIDS situando as semelhanças e diferenças em relação às epidemias do passado: menos fatal, ser mais lento o tempo de latência entre a infecção e o eventual desenvolvimento da doença, o aparecimento de um novo ator, o soropositivo, a possibilidade de desenvolver um processo de cronificação, a necessidade de reordenação da vida sexual e, sobretudo, ter suscitado o aparecimento de grupos de apoio.
Toda essa ampla visão da doença concorre para que os autores voltem sua atenção para o papel a ser desempenhado pela medicina científica, orientada empiricamente, pela centralidade do papel do médico e da especialização "pela busca de um saber racional sofisticado" (p. 33). Os autores situam, ainda, como foi a gradativa importância assumida pelo Estado, a partir do final do século XIX, com os problemas sanitários e higiênicos, assim como com o desenvolvimento da proteção social. Focalizam com veemência o fato de que a dupla evolução da medicina e da proteção social e o cuidado das doenças e as condições dos doentes marcam um processo que se estende por toda a sociedade – o da medicalização, momento em que o saber médico conquistou valor normativo. Não obstante a aparente naturalização de certas características da assistência ou do processo saúde–doença, os autores lembram que os diferentes tipos de doença, de tratamentos, de atores envolvidos na recuperação dos doentes, dentre outros fatores, propiciam não somente diversas experiências individuais de adoecimento, mas também implicam diferentes jogos simbólicos em que são produzidas representações sociais específicas sobre os doentes, sobre as doenças e sobre a própria sociedade. Assim, a peste negra, a varíola, a sífilis, a tuberculose, o câncer e, mais recentemente, a AIDS, são exemplos de doenças emblemáticas de diferentes organizações ou contextos sociais.
Nos capítulos seguintes, as análises vão abandonando esse panorama macrossocial para aprofundar questões relativas ao reconhecimento dos sintomas e das doenças, ao estabelecimento da busca por ajuda, à definição dostatus legítimo de doente e de cuidador etc. Enfim, buscam compreender como o processo de profissionalização das práticas em saúde e a construção de um vasto setor de proteção social propiciaram formas específicas de contato entre as perspectivas leiga e técnica sobre a experiência com a doença. Aborda–se aqui prioritariamente como esse contato se dá em uma malha institucional onde diferentes formas de interpretação sobre os sintomas, as doenças e os processos de cura são construídas.
São citados diversos trabalhos que buscaram compreender como os diferentes grupos sociais produzem visões, estratégias e valores no trânsito pelos serviços de atenção à saúde. A definição da causalidade das doenças, de seus determinantes e fatores de risco é tratada a partir dos códigos sociais que entram em jogo na elaboração do diagnóstico, prognóstico, tratamento e recuperação dos problemas de saúde na rede assistencial.
Assim, são apresentados conceitos como os de seleção social, risco cumulativo, local de controle (locus of control), capacidade de enfrentar situações (coping behavior), entorno social, apoio social, vínculos sociais e suas relações com as diferentes formas e condições de saúde, de acesso e de apropriação dos serviços de saúde por parte da população, de acordo com variáveis socioeconômicas e individuais dos casos analisados. A questão das relações existentes entre estilo de vida e saúde ganha relevo nessa discussão, na medida em que pode ser trabalhada tanto no sentido de culpar os indivíduos pelas atitudes e hábitos cotidianos que influenciam negativamente seus estados de saúde, como pode ser analisada enquanto produto de um conjunto de relações estruturais mais amplas da sociedade.
Também são apresentadas as noções de decodificação dos sintomas e sinais corporais, e de pertencimento a determinados grupos sociais, na medida em que o indivíduo lança mão de um tipo específico de explicação do processo saúde–doença, apoiado num quadro interpretativo característico do seu grupo de convívio. Essas noções ajudam a compreender as proximidades e distanciamentos existentes, por exemplo, entre as lógicas de interpretação de médicos e pacientes, e de suas conseqüências para as tomadas de decisão quanto às orientações prestadas no curso do adoecimento.
A relação médico–paciente ocupa espaço relevante na seqüência do texto, refletindo seu importante lugar nas análises elaboradas pela sociologia da saúde ao longo do século. Retoma–se a análise parsoniana sobre a questão em que direitos e deveres de médico e paciente estão definidos e assegurados por uma norma social que lhes é exterior, orientando univocamente seus papéis sociais.
Em contraposição a essa visão normativa da relação médico–paciente, os autores apresentam algumas considerações do que chamam um modelo conflitivo de abordagem da questão. Nesse modelo, entende–se que a relação médico–paciente está indelevelmente inscrita em jogos de interesses individuais e sociais que se abrem para novas relações hierárquicas e conflitivas existentes entre estes atores sociais. Isto ocorre na medida em que diversos códigos e valores sociais são lançados nas relações face a face presentes no setting médico, produzindo divergências de interesses e de perspectivas, as quais permitem renegociar a todo instante a ordem social vigente.
Os autores exploram principalmente as análises do interacionismo simbólico elaboradas por Freidson, para quem (a) a prática médica é marcada, especialmente, pela oposição entre uma retórica profissional e os interesses pessoais e corporativos dos médicos, e (b) o papel do doente não é medicamente orientado, mas sim socialmente orientado.
O hospital, definido como organização do espaço terapêutico, como instituição organizacional e como local de produção do trabalho médico, merece também um capítulo específico no livro. São abordadas questões como a função terapêutica do hospital e os efeitos iatrogênicos da carreira do paciente nele estruturada. Ou seja, os malefícios à saúde dos pacientes causados pelos diversos mecanismos de controle social a que estão sujeitos na malha institucional hospitalar; a existência de diversas linhas de autoridade ou ordens negociadas nessa organização complexa em que se disputam visões, lógicas e interesses diferentes, próprios à multiplicidade de profissionais, cargos e funções que compõem os quadros hospitalares; e, finalmente, as formas de divisão social do trabalho em saúde elaboradas no âmbito hospitalar, onde são operacionalizadas pelas oposições existentes entre trabalho "técnico x leigo", "intelectual x manual", "digno x pesado". Comenta–se, rapidamente, como essas questões atuam sobre a trajetória da doença (e do doente) efetuada nesse complexo espaço a um só tempo terapêutico, organizacional e de produção científico–assistencial hospitalar.
Por fim, aborda–se de modo mais detalhado a experiência propiciada com a doença crônica, fortemente informada não só pelo trânsito desses pacientes pelas instituições de saúde, mas, em grande parte, pela rede socialcomposta por grupos de convívio organizados em torno do trabalho, da escola, dos círculos familiares e de amigos etc., que estão presentes no cotidiano da vida desses indivíduos. Trata–se de um capítulo intitulado "A experiência da doença em todos os lugares da vida social", em que os autores evidentemente não abordam "todos os lugares da vida social", mas onde são abordadas as incertezas quanto aos rumos e implicações dessas doenças na vida cotidiana dos indivíduos, assim como os processos de adaptação e reorganização das atividades, hábitos e expectativas dos "doentes" no sentido de "normalizar" sua condição de saúde, ou mesmo as estratégias para lidar com os possíveis estigmas gerados em torno de determinadas doenças.
São feitos alguns comentários específicos sobre a condição enfrentada pelos indivíduos portadores do HIV (soropositivos) e daqueles que têm que enfrentar a doença em sua forma manifesta (AIDS). Chama–se a atenção para a dimensão política em que as doenças estão inscritas, na rede assistencial e social mais ampla, que pode ser mais bem visualizada nos adoecimentos crônicos. O caso da AIDS é tomado como um bom exemplo para pensarmos sobre a importância de diversos atores sociais (do ativismo militante, da mídia, dos serviços de saúde, das associações de pacientes etc.) na identificação da doença e de sua consolidação como um problema de saúde pública, na definição de um certo imaginário social sobre a doença e sobre os doentes, no direcionamento do investimento tecnocientífico na sua investigação – enfim, na construção dessa doença entre a esfera privada e pública da vida social.
No Brasil, podemos contar com publicações de excelente nível no campo da sociologia da saúde, que, no entanto, possuem características diferentes daquelas próprias de um manual. Trata–se, em sua maioria, de coletâneas de textos que abordam tanto questões teóricas e conceituais constituintes do campo da sociologia da saúde, quanto resultados das investigações empíricas produzidos pelos pesquisadores da área. Nenhuma das publicações busca apresentar sistematicamente as principais questões enfrentadas pela sociologia da saúde em uma obra que sirva de guia para os primeiros contatos com essa discussão ou mesmo de referência para os pesquisadores que lidam de modo mais próximo com esse campo de investigação.
Quanto aos aspectos formais do texto, os capítulos se subdividem em temas importantes e gerais da sociologia da saúde, com subseções claras e pertinentes. A bibliografia traz grande número de citações da literatura francesa, o que é bastante positivo, considerando–se que as literaturas norte–americana e inglesa têm sido mais comuns entre nós. Além disso, são apresentados em apêndice os principais trabalhos que podem orientar um neófito na área da sociologia da saúde.
Um ponto que merece reparo reside nos constantes problemas de revisão ortográfica que aparecem ao longo do texto. Estes não chegam a gerar dúvidas quanto ao sentido das afirmações, porém incomodam o leitor mais exigente. No entanto, como já foi dito, o texto possui o mérito de expor a discussão de maneira clara e simples, lançando mão de um mínimo de informações específicas para encaminhar a introdução aos problemas abordados. Ainda assim houve um equívoco quanto à designação do agente etiológico da tuberculose2, tratado no texto como um vírus, quando sabemos tratar–se, em realidade, de um bacilo. Finalmente, vale lembrar que o livro não é extenso, sendo de leitura acessível ao estudante ou profissional que começa a trilhar os caminhos da sociologia da saúde.

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1 Phillippe Adam é sociólogo do Centre Européen du Sida e Claudine Herzlich é socióloga, diretora emérita de pesquisa do CNRS, diretora de estudos na EHESS e vice–presidente do Conselho Nacional sobre a Aids (CNS, França). 
2 Na página 22 podemos ler: "[...] em 1882 descobre–se o vírus causador [da tuberculose], o bacilo de Koch...".

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